A política internacional do segundo governo Trump tem causado espanto. Elas vão desde o aumento de tarifas comerciais até (supostos) esforços de cessar fogo em áreas de conflito armado – e incluem ainda a destruição de pequenos barcos e sanções contra juízes. Não é fácil de entender. O que é consenso para a maior parte dos analistas internacionais é que essa nova política dos Estados Unidos da América (EUA) representa um rompimento com a maior parte dos compromissos e alianças históricas daquele país. Porém, eu gostaria de contribuir com essa discussão, propondo algo diferente: essas políticas não representam, de fato, um rompimento com as estratégias internacionais dos Estados Unidos. Elas são, na verdade, uma reprodução de políticas anteriores. E as medidas do governo Trump para a América Latina deixam isso claro.
As políticas internacionais de Trump para a América Latina não são novas. De fato, elas são políticas que tentam imitar doutrinas antigas dos EUA para a região – o que é de alguma forma coerente com o slogan de campanha de Donald Trump, “Make America Great Again” (Façamos a América Grande Novamente). No entanto, diferente do Colorário Roosevelt ou da Doutrina Monroe do “Big Stick” (O Grande Porrete), a maior parte das ações que o Ministro das Relações Exteriores dos EUA, Marco Rubio, até agora, tiveram efeito meramente simbólico – com mais significado ideológico do que consequências materiais.
Nesse sentido, as políticas de Donal Trump para a América Latina poderiam ser classificadas em dois tipos que, frenquentemente, se sobrepõem: as simbólicas e as discricionário. “O Poder Simbólico”, de acordo com Pierre Bordieu, “pode se tornar um poder constitutivo” – um poder de classificação, no sentido político e filosófico. Já o poder discricionário é justamente o poder não-contido, mas (supostamente) autorizado pela constituição, e que pode ser exercido pelos governos da maneira como bem entendem. As políticas do governo Trump são profundamente marcadas por ambas essas características.
O simbólico e o discricionário, quando aplicados as relações internacionais, podem se tornar uma estratégia poderosa, dificultando qualquer negociação com os EUA para os países Latino Americanos, e para quaisquer outros países. Quando os interesses comerciais e políticos dos EUA parecem pouco racionais, confiáveis e previsíveis, isso já é resultado desta estratégia, que os esconde sobre uma capa de simbolismo e ideologia. Essa tática coloca os EUA em uma posição muito favorável opara negociar qualquer coisa, porque ela torna muito difícil para os diplomatas estrangeiros, entenderem o que eles querem. É importante lembrar que Donald Trump se considera um grande negociador, com vasta experiência. E, talvez, seja justamente por isso que tenha escolhido usar essa estratégia – e talvez seja, também, por essa razão, que Trump gostou de Lula quando se encontraram na Assembleia Geral da ONU: Lula também é um negociador experiente, forjado em assembleias e negociações sindicais.
Um exemplo desse tipo de política simbólica para a América Latina, foi a tentativa do governo Trump de renomear o Golfo do México. Outro, foi a imposição de sanções da Lei Magnitsky contra Ministros do Supremo Tribunal Federal – por terem condenado o ex-presidente Jair Bolsonaro, um ex-aliado de Trump – a 27 anos de prisão, pelos crimes que cometeu. Por outro lado, as tarifas impostas em relações comerciais, são um claro exemplo de uso do poder discricionário no limite da validade constitucional – algo que o governo Trump também fez em políticas internas dos EUA, quando suspendeu a ajuda humanitária dos programas da USAID, e também quando desafiou as maiores universidades do país, quanto às suas políticas de bolsas, diversidade e inclusão.
Entretanto, foi justamente através das tarifas comerciais – que foram impostas a uma série de países e, as vezes, pareciam não fazer sentido – que as primeiras políticas internacionais do governo Trump tiveram impacto real na América Latina. Elas eram, ainda, bastante simbólicas, como exemplo do que aconteceu com o Brasil demonstra. Em um primeiro momento, houve uma proposta de taxação 50% que seria imposta sobre aproximadamente 700 produtos brasileiros. Em seguida, esses produtos sobretaxados foram reduzidos para aproximadamente 100 – excluindo o aço brasileiro, os aviões da Embraer e outros produtos fundamentais para a economia dos EUA.
Esse sentido simbólico das tarifas comerciais também foi desafiado pelos recentes embates entre os EUA e o Canadá – o que inclui um processo que está atualmente na Suprema Corte dos EUA, e que pode decidir, em breve, se o presidente dos EUA pode agir com tamanho poder discricionário em políticas comerciais internacionais. Afundar pequenas embarcações na costa da Venezuela também foi mais um exemplo de uma política extremamente simbólica e descricionária – uma vez que essas ações não terão nenhum efeito duradouro sobre o tráfico de drogas, como alegado. No entanto, essas ações militares projetam uma imagem simbólica de segurança nacional e, simultaneamente, testam os limites do poder de Donald Trump em promover ações militares sem autorização do Congresso dos EUA.
Talvez as únicas políticas internacionais claras do governo Trump para a América Latina tenham sido aquelas relacionadas à Argentina – a quem os EUA emprestaram uma enorme quantidade de recursos financeiros. O apoio à Argentina não foi apenas uma política de estado, mas uma maneira direta de ajudar um aliado político – o atual presidente da Argentina, Javier Miliei – às vésperas de uma eleição. E funcionou. Contudo, estas ações provocaram reações contrárias entre os próprios aliados republicanos de Donald Trump - talvez porque faltou a elas o seu caráter simbólico, uma vez que foram mais claras, racionais, e objetivas.
Na minha opinião, a medida mais perigosa dos EUA nas suas políticas para a América Latina é a proposta de tratar traficantes de drogas como se fossem terroristas – e possivelmente justificar intervenções militares contra governos de esquerda na Colômbia, Venezuela e em outros países do continente. Mas é importante notar, uma vez mais, que estas medidas não são muito diferentes do que foi feito durante o governo Reagan, quando governos de centro-esquerda na América Latina foram classificados como “comunistas” para justificar intervenções militares na região. Será que nós estamos diante de um retorno ao final da Guerra Fria, porém dessa vez opondo as duas maiores economias do mundo, a China e os EUA? Seriam todas essas políticas do governo Trump para a América Latina medidas de contenção da influencia chinesa? Estariamos nós presenciando a morte final dos esforços de Henry Kissinger – ex Ministro das Relações exteriores dos EUA – de aproximação entre China e os EUA? Será que essas táticas vão funcionar par os EUA?
É impossível prever o futuro. Mas uma coisa é certa. O sentido simbólico de afundar “pequenos barcos” é maior do que parece para a extrema direita global. No Reino Unido, a última medida política do partido conservador, antes de sua queda, foi elaborar uma campanha contra imigrantes focando, exatamente nas pequenas embarcações: “stop the boats” era o slogar do ex-primeiro ministro Rish Sunak. Os partidos de extrema direita britânicos querem cultar os “pequenos barcos” pela imigração ilegal. Nesse sentido, as ações militares de Donal Trump na Venezuela podem carregar um significado simbólico maior – seja consciente ou inconsciente. A ironia histórica disso, para o Reino Unido é gigantesca: foram justamente “pequenos barcos” que salvaram o exército Britânico de ser aniquilado pelo exército alemão, liderado por fascistas, na batalha de Dunkirk. Talvez não seja uma coincidência histórica o fato de que, se os pequenos barcos salvaram os aliados diante de fascistas, agora, fascistas queiram afundar pequenos barcos – como estratégia simbólica e discricionário.
Nota 1: uma versão anterior dessas ideias foi publicada como entrevista por Brendan Cole, no veículo norte-americano Newsweek.
Nota 2: uma versão em inglês desse texto foi simuntaneamente publicada no blog Critical Legal Thinking.
*Marcus V. A. B. De Matos é doutor em Direito e Professor de Direito Público e Teoria do Direito (Senior Lecturer in Law) em Brunel University of London. Membro Honorário do IAB e da Diretoria da Associação Brasileira de Estudantes e Pesquisadores no Reino Unido (ABEP-UK). Co-autor do premiado livro “Imagens da América Latina: mídia, cultura e direitos humanos” (Intersaberes, 2021). Contato: [email protected] . Siga em: @mvdematos
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.