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Por Pedro Serrano*, em A Terra é Redonda
Uma das grandes preocupações daqueles que, no campo da política e do Direito, se dispõem a debater e a compreender este começo de século é o surgimento de novas formas de autoritarismo e de uma crescente onda de medidas autoritárias instauradas no interior de regimes democráticos. Em várias partes do mundo e, especialmente na América Latina e no Brasil, assistimos ao recrudescimento dessas medidas, que resulta em brutais retrocessos no campo dos direitos. Em meus artigos, livros e entrevistas, já há alguns anos, venho também me dedicando a entender as características do fenômeno, a que tenho chamado de autoritarismo líquido.
O autoritarismo líquido se caracteriza pela produção intensa de medidas de exceção no interior das democracias, logo não é exercido pela via de um governo de exceção clássico, como as ditaduras militares, os regimes nazifascistas ou o bonapartismo. É, portanto, mais sutil e menos evidente na forma, embora seu conteúdo seja extremamente violento. É certo que todo regime democrático está sujeito à ocorrência eventual de medidas autoritárias no seu interior, no seu cotidiano – o que podemos entender como disfunções. Mas, no caso do autoritarismo líquido, não são medidas isoladas, e sim de uma patologia, pois se dá com uma recorrência muito maior do que seria admissível ou imaginável, embora indesejado, num sistema democrático de intensidade regular.
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Maquiavel dizia, com muita correção a meu ver, que a virtude do político é alcançar o poder e nele permanecer tanto quanto possível. A lógica de todo sistema autoritário é essa: se fortalecer em justificativas e dificultar a sua identificação como autoritário, justamente para ficar o máximo possível no poder. Assim, as medidas de exceção que compõem o autoritarismo líquido são interessantes para o sistema autoritário exatamente porque são mais cirúrgicas, não implicam suspensão dos direitos de toda a comunidade, ou, pelo menos, não ao mesmo tempo, o que camufla, de certa forma, o seu caráter real. Num mesmo ambiente, as medidas de exceção convivem com medidas democráticas, o que faz com que se diluam, se liquefaçam, tornando ainda mais difícil a sua identificação e, ao mesmo tempo, facilitando a construção de seus discursos de justificação.
Importante observar que a medida de exceção se constitui de uma fraude no sentido jurídico da expressão pois, embora tenha uma aparência de regularidade constitucional e democrática, na realidade possui conteúdo material tirânico – no sentido clássico da expressão “tirania” na filosofia política – que visa a persecução do inimigo político. Um bom exemplo deste modelo é o processo penal de exceção, que sob a roupagem de processo que cumpre a ordem jurídico-constitucional, trata o réu não como um cidadão que eventualmente errou, mas como inimigo a ser perseguido. Entenda-se, neste contexto, o inimigo como a pessoa desprovida de sua condição humana, ou seja, um ser, um corpo que não tem proteção jurídico-política mínima.
Houve uma mudança muito grande na forma e, por consequência, na natureza do autoritarismo do século XX para o do século XXI. Nos modelos típicos do século passado, instituíam-se governos em que o estado de exceção se instaurava como medida de emergência, sempre amparado no discurso da defesa da segurança do Estado e da sociedade. Sob o pretexto de se garantir a segurança e a paz social, se realizava o combate ao inimigo, suspendendo seus direitos.
A Segunda Guerra Mundial provocou uma revolução na forma como o homem ocidental passa a enxergar o mundo, uma vez que os dois grandes pilares da sociedade ocidental – democracia e ciência – deixaram de garantir a adoção de medidas ou decisões éticas. A ciência, como se sabe, foi utilizada para o genocídio; enquanto a democracia, para acabar com a própria democracia. O nazismo e o fascismo ascenderam ao poder por vias democráticas e, utilizando-se das autoridades democráticas, acabaram com a própria democracia e com os direitos. Assim, o pós-Segunda Guerra pode ser entendido como uma “ressaca” da tragédia que foi o nazismo e a radicalização de algumas estruturas ocidentais.
No plano jurídico, o que sobrou como resíduo disso foi a formulação de um sistema pautado em constituições rígidas, que não permite mais que decisões políticas sejam tomadas de forma totalmente livre, obrigando os governantes a respeitar os direitos de liberdade, as liberdades públicas da cidadania e a realizar os direitos sociais.
O objetivo dessas constituições, como disse o jurista Luigi Ferrajoli, era ser uma semente antifascista. No Brasil, a Constituição de 1988, foi pensada e elaborada já nessa tradição e nessa estrutura – de uma constituição cidadã, que servisse de vacina contra a ditadura, estabelecendo uma série de direitos e liberdades sociais a serem observadas nas decisões políticas. A pauta ideológica mais relevante da nossa Constituição é exatamente a garantia de direitos, a fim de evitar que haja decisão majoritária contraditória a esses direitos. E a função do Judiciário deveria ser a de garantidor desses direitos, de forma contramajoritária.
Isso não significa, no entanto, que o autoritarismo deixou de existir. O autoritarismo do século XXI dialoga com esse constitucionalismo e com essa visão do pós-guerra de democracia e garantia de direitos. O autoritarismo líquido se caracteriza como mera mediação discursiva, cuja finalidade é autoritária. Ele se instala sem que haja uma ruptura clara com a democracia.
Na América Latina e, especialmente no Brasil, conforme minha pesquisa concluiu, o agenciador principal das medidas de exceção é o sistema de justiça. O inimigo aqui não é o estrangeiro, o terrorista, mas o pobre tido como bandido. As técnicas do autoritarismo líquido se desenvolvem, sobretudo, com a juventude negra das periferias, o que levou a um aumento brutal do encarceramento, do número de homicídios e da violência, de forma geral. Assim, chegamos ao lugar de terceiro país que mais aprisiona em todo o mundo. Esse mecanismo tem formado um exército de soldados de organizações criminosas, uma vez que jovens presos pela prática de crimes de baixa intensidade têm, por razões de sobrevivências dentro dos presídios brasileiros, de se filiar a facções.
Além dessa técnica, na América Latina, observam-se duas grandes categorias predominantes de medidas de exceção: os inquéritos e processos penais de exceção, que já citei aqui, e os impeachments inconstitucionais. Importante observar que, no Brasil, o processo penal de exceção migra para a política, como no famoso caso do “Mensalão”, para perseguir lideranças políticas, em geral, de esquerda. Isso não é necessariamente uma novidade. Os processos de Moscou, que julgaram opositores políticos de Stalin, na antiga União Soviética, na segunda metade da década de 1930, tiveram estrutura semelhante, ou seja, embora houvesse tribunal, advogado de defesa, recurso, juiz e todo aparato regular de um processo, a condenação era certa, pois se tratava de um processo pantomímico, de mera formalidade, uma vez que o réu era tido e tratado como culpado de antemão.
Sobre os impeachments inconstitucionais, embora o caso de Dilma Rousseff seja emblemático, vale apontar que o jurista norte-americano Ronald Dworkin já mencionava em artigo publicado na revista The New Yorker, no final dos anos 1990, que o processo de impeachment do então presidente Bill Clinton, nos EUA, depois rejeitado pelo Legislativo, se tratava de um golpe constitucional. Dworkin foi o primeiro a usar a expressão “golpe” para se referir a essa modalidade de impeachment. Ele observou os agentes que deveriam interpretar e garantir a Constituição valeram-se da figura da interpretação constitucional para golpear a própria Constituição. Segundo Dworkin, num presidencialismo democrático, o impeachment deveria ser encarado como algo semelhante a acionar o botão da arma nuclear. Isso significa que se trata de um instituto a ser usado em situação de absoluta emergência, de forma extremamente rara. E o que se viu na América Latina, na última década, foi sua banalização como instrumento de persecução política a governos de esquerda legitimamente eleitos, portanto, medidas de exceção.
A Europa também adotou processos penais de exceção no Direito Penal comum, mas com diferenças em relação ao modus operandi latino-americano. Lá, ainda que as medidas de exceção sejam também produzidas pelo Legislativo ou pelo Judiciário, em geral, quem as agencia é o Executivo, e dentro de um regime jurídico especial, de emergência. No cotidiano do Direito Penal comum, os direitos continuavam vigorando, e medidas excepcionais são adotadas sob o pretexto de se garantir a segurança nacional contra o ataque do estrangeiro, do “terrorista”. Nos Estados Unidos há um modelo híbrido que apresenta elementos semelhantes ao modelo europeu, como o Patriotic Act, que fortaleceu imensamente o executivo, e ao latino-americano.
Como consequência desse autoritarismo líquido, do uso intenso de medidas de exceção, sobretudo pelo sistema de justiça, ocorre o que Luigi Ferrajoli chama de processo desconstituinte, ou seja, embora a Constituição, em teoria, continue em vigor, a interpretação que é dada aos direitos que ela estipula os restringe de tal forma, que a esvazia de significado. Ocorre uma retirada do sentido material da Constituição, sem se retirar sua validade formal.
Por fim, outro ponto relevante a ser observado é que essa prática de autoritarismo líquido produz líderes autoritários como os da atualidade: Bolsonaro, no Brasil, Trump, nos EUA e Le Pen, na França, são exemplos emblemáticos. Como num balão de ensaio, o autoritarismo vai sendo experimentado e gesta como produto o adensamento dessa ideologia autoritária, que se traduz num populismo de extrema direita diferente do populismo de extrema direita do século XX, justamente porque se estabelece no meio desse mecanismo líquido de autoritarismo. Os líderes autoritários de agora chegam ao poder pela via da democracia, fazendo uso de direitos e de estruturas da democracia. Sem precisar romper com o ciclo democrático e, em certa medida, fazendo disso um trunfo, praticam cotidianamente medidas de exceção, fundamentando-as ideologicamente.
*Pedro Serrano é jurista e professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.