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Autor da música e do livro Diário de um Detento, Jocenir Prado conta como é o cotidiano das prisões de São Paulo e afirma: os presos já têm poucos conhecimentos e valores humanos e perdem esse pouco na cadeia
Um dos maiores suces¬sos dos Racionais MCs, a música Diário de um Detento, nasceu um pou¬co a contragosto. Ela foi um dos vários raps escritos por Jocenir José Fernandes Prado, autor de livro homônimo, durante sua estada de quatro anos no sistema prisional paulista. Fora da cadeia, ele confessa: “Nunca gostei de rap, sou roqueiro, mas comecei a escrever algumas letras para agradar o pessoal”.
Mas a música não foi o único recurso do réu primário Jocenir para conseguir seu espaço na prisão. “Percebi que o que tinha para oferecer era meu estudo”, lembra. “Comecei a bater petições para o juiz, apelações, cartas para familiares. Alguns caras foram soltos e eu ganhei o respeito, primeiro de alguns chefes e depois dos outros presos.” Na entrevista a seguir, o ex-detento conta como era sua vida na cadeia e analisa a atuação do Estado na área da Segurança Pública.
Réu primário
Fui condenado por receptação de carga no dia 8 de dezembro de 1994 e fiquei preso até o dia 13 de novembro de 1998. Minha pena era de oito anos e três meses de prisão, era réu primário. O julgamento em primeira instância levou 11 meses, e fui condenado. Apelei da cadeia e fui inocentado, mas o processo levou três anos e quatro meses para ser julgado. Se eu não tivesse apelado, por ser réu primário, teria saído mais ou menos em dez meses. Nesse período, passei pela cadeia municipal de Barueri, pela Casa de Detenção no Carandiru e pelo presídio de Avaré. Mas não era visto como bandido e sim como um pára-quedista. Por isso, não fui aliciado para nenhuma facção. Na época, eles só procuravam bandidos respeitados.
Respeito
O código moral do delinqüente é outro, o que é imoral para nós pode não ser para ele. Tanto que saem para fazer um assalto e dizem que vão trabalhar. E é o trabalho deles. No presídio, eles mantêm essas regras. Meu maior sofrimento no primeiro ano foi me adaptar a isso. Recebi pressões, tiveram uns viciados querendo me extorquir. Cheguei a ter que resolver coisas na faca, mas outros presos separaram. Aí vi que não ia durar muito se continuasse assim. Percebi que o que eu tinha para oferecer era meu estudo. Daí comecei a bater petições para o juiz, apelações, cartas para familiares. Alguns caras foram soltos e eu ganhei o respeito, primeiro de alguns chefes e depois dos outros presos.
Nunca gostei de rap, sou roqueiro, mas comecei a escrever algumas letras de rap para agradar. Acabou virando aquela música que estourou. Eu não aceitava receber nada por essas coisas, mas muitos jogavam pacotes de cigarro na minha cama quando eu estava fora. Chegou uma hora que mandava mais coisas para minha mulher fora da cadeia do que recebia. Ela vendia os cigarros e isso ajudou muito nas despesas de casa. Consegui esse respeito por causa da ausência do Estado. Tinham vários presos com direitos que era só fazer a petição para o juiz, mas eles não sabiam disso, nem como fazer. O Estado chega até as muralhas, ele não entra no presídio.
Ócio
No Brasil, as prisões são fábricas de monstros. Eu tinha as mesmas idéias que todos têm sobre os presos. Até cair lá dentro. Aí vi que é uma massa de jovens desestruturados, sem formação familiar, religiosa, pedagógica, quando não analfabetos e totalmente desinformados. Eles já têm poucos conhecimentos e valores humanos e perdem esse pouco nos presídios. A sociedade aceita o que o Estado passa e nem sempre é a verdade. Aumento de penas e de restrições não vai mudar a situação. O que mudaria seria ter assistência jurídica, médica e social para o preso. Muitos nem sabem os direitos que têm. A falta de laborterapia também é um ponto importante, porque o ócio é o maior castigo da cadeia. Abre portas para as drogas e outras coisas. Em Avaré, eu costurava bola que nem um louco e ganhava o pecúlio, uns R$ 100,00, com o qual eu conseguia me manter sem dar despesas para minha mulher. Mas eram 1.000 presos e 180 vagas de trabalho. E os outros?
Escola do crime
No artigo 12, que é tráfico de drogas, a menor pena é de três anos. Um elemento condenado a três anos, réu primário, vai para uma cela com caras com mais de 100 anos de condenação, reincidentes. Caiu uma vez na minha
cela um moleque primário que tinha sido condenado por tráfico. Mas na cela só tinha “piolho”, cara reincidente, experiente. O moleque logo começou a planejar seqüestro, assalto a banco, falava que ia ficar rico. É preciso criar presídios para penas leves. Não precisa construir novas unidades, basta remanejar os primários para outros lugares. Avaré, onde eu fiquei, era um presídio de segurança máxima e tinha gente com pena de três anos.
Polícia
A PM, quando entra no presídio, onde ninguém vê, longe das câmeras de TV, fica pior que os presos. Eu vi policiais deixarem aquele escudo do choque cair no pé de um preso e decepar o dedo do cara, botavam o cachorro para cheirar os testículos do cara e, se ele se mexesse, o cachorro mordia. Eles me fizeram comer merda uma vez, colocaram num pedaço de pau e me fizeram comer. Tudo além das obrigações deles. A cadeia em Barueri era feita para 48 presos e abrigava 340. Era insuportável, todo mundo estava com sarna, outras doenças. Um dia, explodiu. Os caras botaram fogo na cadeia. Qualquer coisa era melhor que aquilo. O Choque veio para controlar a situação. Mas depois de dominar, em vez de entregar o controle para os agentes penitenciários como era a obrigação deles, ficaram mais de três horas torturando os presos. Fiquei 3 horas pelado, apanhando num corredor polonês. Nunca apanhei tanto na vida.
Relações perigosas
Os agentes penitenciários têm um convívio muito íntimo com os presos, dividem seus problemas com eles. Isso gera uma intimidade perigosa. Não é incomum que presos emprestem dinheiro para agentes, por exemplo. Eu já vi um agente penitenciário ser colocado numa cela e levar tapa na cara porque estava devendo para o preso. Esse contato direto gera amizade e é uma janela para a corrupção. Revistar advogados ou visitas não adianta nada. Quem leva o celular para o presídio é o funcionário. Ele vende dentro do presídio um celular qualquer por R$ 1.000,00, é o salário dele.
Marcola
Uma coisa que eu aprendi é que na prisão o que conta é a humildade. Mesmo os maiores bandidos têm essa humildade. Eu vi o Marcola três vezes na Penitenciária do Estado. Ele é um sujeito com um carisma muito grande, tomava conta de qualquer ambiente. Mas sempre com humildade, não tinha arrogância. Eu lembro que, quando saí, um tempo depois mandaram o Marcola para Brasília e eu falei para minha mulher: “ele vai voltar rapidinho”. Não deu outra. Um cara que nem ele chega e toma conta do lugar, tem liderança. Pode ser que entre em choque com outra liderança, mas sempre vai acontecer alguma coisa.
Facções criminosas
No estado de total abandono em que os presos se encontram, isso ia acontecer um dia. Em 2001, o então secretário de Administração Penitenciária de São Paulo, Benedicto Azevedo Marques, foi perguntado sobre as facções e ironizou, dizendo que “preso não tem capacidade para se organizar”. Achar que você pode pegar homens nas ruas, jogar atrás de muralhas e esquecer deles é subestimar a pessoa. Eles não terem estudo não quer dizer que não tenham condições de se organizar.
Linha dos 30
As facções não representam nem 15% da população carcerária. Os presos com penas pequenas acabam sendo reféns da situação. Você vê numa rebelião, são 50 caras no telhado e o resto não quer participar. Quem faz as rebeliões é o pessoal da “linha dos 30”, como chamam, os que estão condenados a mais de 30 anos. E quem permitiu a formação das facções foi o Estado, e a sociedade por meio dele. Em Avaré, onde fiquei, o Comando Democrático da Liberdade (CDL) dominou a penitenciária a tal ponto que chegou a influenciar na diretoria.
Moral
Achava que, quando saísse, ia resolver a vida em 30 dias, mas me deparei com a realidade. Ninguém queria me ajudar, amigos me deram as costas. Quem me ajudou nessa hora foram presos que saíram antes. Eles vinham até minha casa com caminhões de cestas básicas e outras coisas e descarregavam. Você acha que eu perguntei de onde veio, se era roubado? Que moral eu tenho para falar deles? Outros caras saem da cadeia e é a facção que dá dinheiro para ele recomeçar.
Colhe-se o que se planta
Com tudo isso, eles não vão sair de lá com rosas, não vão sair padres. Ou condenam todos os presos à prisão perpétua ou tem que mudar o tratamento dentro dos presídios. Estão fabricando monstros e uma hora esses monstros vão sair. F