Caro e sem garantias: O contrato que coloca São Vicente em risco – Por Danilo Tavares
Para especialistas em tecnologia e gestão pública, o contrato com a Visual Sistemas representa uma oportunidade perdida
Em 18 de março de 2024, a prefeitura de São Vicente firmou um contrato de mais de R$ 5,4 milhões com a empresa Visual Sistemas para modernizar o atendimento ao cidadão e a transparência pública. A proposta, embora ambiciosa, levanta preocupações sobre custos, transparência e a dependência tecnológica que ela pode gerar para o município.
Um dos pontos mais criticados é o uso exclusivo de softwares proprietários — programas fechados que só podem ser operados e modificados pela empresa fornecedora. Esse modelo gera uma dependência direta, que pode se tornar um grande problema no futuro. Caso a empresa encerre suas atividades, por exemplo, a prefeitura pode perder o acesso ao sistema, comprometendo serviços essenciais à população. Em outros países, como a França, essa situação é evitada com cláusulas de proteção que garantem à administração pública o acesso ao código do sistema, mesmo em caso de rompimento contratual. Em São Vicente, esse tipo de salvaguarda não foi previsto.
Além disso, os custos do contrato chamam atenção. Enquanto outras cidades brasileiras, como Porto Alegre e Recife, economizam com o uso de softwares livres — gratuitos e personalizáveis —, São Vicente decidiu investir em soluções mais caras e menos flexíveis. Só o módulo corporativo do sistema custará R$ 346 mil em dois anos. O aplicativo voltado para o cidadão custará mais de R$ 460 mil no mesmo período. Esses valores são considerados altos, especialmente se comparados a municípios que atendem uma população maior com orçamento menor.
Outro problema identificado é o preço do hardware. Equipamentos como totens de autoatendimento e emissores de senhas aparecem no contrato com valores bem acima do mercado. Para especialistas, esse possível superfaturamento poderia ser evitado com a adoção de componentes abertos e de fácil manutenção, como já é feito em outras capitais. Em Recife, por exemplo, totens foram desenvolvidos com tecnologia própria, gerando economia de até 35% nos custos.
A transparência no processo também deixou a desejar. O termo de referência, que detalha as exigências técnicas do sistema contratado, não está disponível ao público. Isso impede a sociedade de fiscalizar se o dinheiro está sendo bem aplicado. Informações essenciais, como justificativas técnicas para a escolha da empresa e comparativos com outras propostas, também não foram divulgadas. Em outras cidades, como Recife e Munique (Alemanha), esse tipo de dado é disponibilizado em portais abertos, permitindo que a população acompanhe de perto o desempenho dos serviços.
Outra falha grave é a ausência de metas claras no contrato. Não há, por exemplo, exigência de tempo máximo de espera para atendimento, nem metas de disponibilidade do sistema. Isso dificulta o controle de qualidade dos serviços prestados e enfraquece a fiscalização. Em países como Chile e Índia, contratos públicos já incluem indicadores de desempenho e penalidades em caso de descumprimento.
A proteção de dados também foi negligenciada. Apesar de o sistema lidar com informações sensíveis, como CPF e endereço dos usuários, o contrato não exige auditorias de conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Em caso de vazamento de dados, o prejuízo pode ir muito além do financeiro, comprometendo a confiança da população na administração pública. O ideal seria a exigência de certificações emitidas por empresas independentes, prática já adotada em outros países latino-americanos.
Para especialistas em tecnologia e gestão pública, o contrato com a Visual Sistemas representa uma oportunidade perdida. Com o mesmo valor, São Vicente poderia reformar escolas, comprar ambulâncias ou ampliar o número de vagas em creches. A economia obtida com soluções livres e transparentes poderia ser reinvestida diretamente em áreas prioritárias, como saúde e educação.
O que se deve fazer, no entanto, não é o cancelamento total do contrato, mas sim uma reavaliação de suas cláusulas. Seria possível, por exemplo, renegociar a inclusão de metas de desempenho, estabelecer auditorias de proteção de dados e até adotar um plano de transição gradual para softwares livres, começando por áreas menos críticas. Além disso, abrir espaço para diálogo com universidades e startups locais pode resultar no desenvolvimento de soluções mais baratas e adaptadas à realidade da cidade.
Enquanto cidades ao redor do mundo caminham rumo à soberania tecnológica e à transparência total, São Vicente ainda adota modelos antigos, que favorecem poucos e custam caro à maioria. A modernização dos serviços públicos é necessária, mas precisa ser feita com responsabilidade, controle e visão de longo prazo. O cidadão merece sistemas eficientes, seguros e acessíveis — e, acima de tudo, merece saber como e por que seu dinheiro está sendo gasto.
*Danilo Tavares (@danilotavaressol) é produtor cultural, funcionário público municipal e secretário de comunicação do PSOL de São Vicente, além de membro do Conselho de Economia Solidária de São Vicente e do Fórum de Economia Solidária da Baixada Santista e diretor da Casa Crescer e Brilhar.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.