A chave – Por Luis Cosme Pinto
A fila andou e pegou de surpresa o velho malandro da Freguesia do Ó
A mesma chave e a mesma porta. Décadas de convivência íntima na rua da Bica, na Freguesia do Ó. De repente, as duas deixam de se entender. Uma não abre mais a outra.
Amadeu insiste, mas a chave não entra. Ele olha contra a luz. Esfrega a chave na calça, sopra, quem sabe um cisco? Nada.
Toca a campainha uma, duas, muitas vezes. Silêncio.
Amadeu liga pro filho que trabalha ali perto. Rodrigo chega da oficina despenteado e com o macacão vermelho. Ele não sabe direito como começar. Então, inspira fundo e dispara a falar.
“Pai cê pisou na bola. A mãe viu teu celular. A mãe disse que já tava de olho nessa tal de Betina faz tempo. A mãe falou pra mim e pra Flavia que você não pode mais entrar aqui. Eu falei pô cês tão juntos há 40 anos. Dá uma chance pro pai.”
- Eu não dou é mais nada para esse peste do seu pai. Chega! Agora ele vai aprender e vai aprender bem longe daqui.
“Aí, ela chegou pra mim e pra Flavia e deu as chaves novas da casa. É por isso que a sua não tá abrindo, entendeu”?
Amadeu, 62 anos, açougueiro aposentado, atualmente motorista de aplicativo com carro alugado, só consegue falar quando Rodrigo abre a palma da mão. Prateada e reluzente, ali está a chave que ele fez para o pai, sem a mãe saber, claro.
Amadeu pega a chave. Rodrigo alerta que é melhor o pai entrar, pegar suas coisas e dar o fora.
“Aliás, pai, se a mãe perguntar, não fala que te dei a chave. Como a Flavia tá viajando, ela vai ter certeza que fui eu”.
Amadeu me conta tudo isso enquanto tenta superar um congestionamento em São Paulo. Até alguns minutos, era eu um passageiro e ele um motorista, mas a história dramática de separação e ciúme nos aproximou.
- Betina é uma mulher preta, um pouco mais escura que eu, nem gorda nem magra, mais ou menos da minha altura. Tem 33 anos e é mãe solteira de dois meninos.
- Como ela é?
- Eu acho bonita. De rosto e de corpo. Trabalha pra caramba e tá sempre alegre. Ela limpa os banheiros, vestiários e a lanchonete do campo de futebol que eu jogo às quintas-feiras.
Entre carros parados e motoboys atrasados, Amadeu conta mais.
- Logo no primeiro dia de trabalho dela a gente conversou. A Betina avisou que meu tênis estava desamarrado e eu me apresentei. Betina comentou que se eu usava a camisa 10 era porque eu era atacante. Eu ri, disse que era artilheiro e que ia fazer um gol pra ela.
- Foi aí que começou o namoro?
Amadeu me encara refletido no retrovisor.
- O senhor pode não acreditar.
- Chama de você...
- Você e o mundo podem não acreditar, mas eu não tenho nada com a Betina. Nunca relei nela. A gente se conhece há 5 meses e somos amigos. Nada mais.
- Nada mesmo, Amadeu?
- Nada, eu juro. A única coisa, não sei se você entende, é que mesmo não rolando nem um beijo eu ficava feliz dos colegas do futebol acharem que a gente tinha um caso. Eu me exibia, sabe? E como dava carona pra ela até o ponto de ônibus, o comentário era geral.
- Mas você queria ou não queria?
- Até hoje eu não sei.
- Se vocês não namoravam, porque a Estela te botou pra fora de casa?
- Ela soube que eu fiz um pix pra Betina de 220 reais e ficou uma fera. Já a Betina me deixou esse áudio meloso.
Amadeu desliga o rádio e mostra a mensagem. “Amadeu querido, que coração grande, nem sei como agradecer. Quinta-feira a gente se vê. Quero mais um gol, hein.”
- Meus filhos contaram que minha mulher entendeu tudo ao contrário. Achou que eu andava saindo com a Betina e que o futebol era mentira. Que eu chegava tarde em casa não porque depois do tal jogo tinha conversa com os amigos e sim namoro com a vagabunda, assim ela chama a Betina. O pix piorou tudo porque uns dias antes a Estela falou que estava com vontade de passear em Mongaguá e eu disse que não tinha dinheiro pro combustível.
- Você mentiu.
- Eu brinquei com coisa que não se brinca.
- Por que você não conversa com a Estela?
- Porque ela não quer.
A cada instante de congestionamento conheço um pouco mais da história de Amadeu, que tamborila os dedos no volante.
- Ela está muito brava, há cinco anos, eu tive um rolo. Foi com uma passageira, a gente saiu uns meses. Antes, nos tempos do açougue, eu também namorei a Marlene e teve a Sueli, de um samba na Barra Funda.
- E a Estela?
- Eu pedia desculpas e ela perdoava. Agora acabou. Ela cansou.
Amadeu engole em seco e eu provoco.
- E a Betina?
Ele dá o primeiro sorriso.
- Me chamou para dormir na casa dela.
- Uau.
- Não se anima não. Ela, as duas crianças e o cachorro dividem a mesma cama no quarto. No sofá da sala, fica a mãe dela. Eu dormi num colchonete com os pés pra fora e acordei com torcicolo. Agradeci e não voltei mais. Parei com o futebol e a gente nunca mais se viu. Ela já me pagou quarenta reais, daquela grana que eu emprestei. Ontem, a Betina me mandou essa novidade.
Amadeu mostra o celular. Numa foto, Betina está com os dois filhos e um rapaz forte e bonitão. Os dois de mãos dadas.
Amadeu me diz que essa é a fase mais difícil de sua vida. Mora numa pensão perto da Cracolândia. Come mal, trabalha muito e ganha pouco. Está triste com a vida e exausto de tanto dirigir.
- Amadeu, chegamos. É aqui do lado direito.
O carro para, mas Amadeu continua a falar e eu a ouvir.
Ele confessa que tentou se reaproximar de Estela. No início do mês, cortou o cabelo, passou colônia e parou o carro a uns 20 metros da antiga casa. Enquanto matutava se tocava a campainha ou telefonava para Estela, viu uma desconhecida abrir o pequeno portão daquela casa que também é dele. Uma mulher uns 5 anos mais nova que Estela. A convidada trazia uma pizza na mão direita. Na canhota, vinho e rosas.
Amadeu piscou os olhos e se assustou ainda mais quando viu a convidada abrir a porta com a própria chave. A chave nova!
Quieto, escondido pelos vidros escuros, viu a luz da sala se apagar e algum tempo depois a do quarto se acender. A lâmpada do abajur. Ali, do lado esquerdo, em que ele sempre dormiu.
- Sei que você tem hora, Cosme...
- Continua, Amadeu.
- Só para terminar: às vezes eu acho que é pesadelo. Nunca imaginei que a Estela, aos 60 anos, depois de 40 anos de casada, quisesse outro relacionamento e muito menos com uma mulher.
- Posso escrever essa história?
- Pode, mas duvido que alguém acredite.
*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, livro de crônicas semifinalista do prêmio Jabuti 2024.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.