Crônica

A chave – Por Luis Cosme Pinto

A fila andou e pegou de surpresa o velho malandro da Freguesia do Ó

Escrito en Opinião el
Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 60 anos de idade e 35 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.
A chave – Por Luis Cosme Pinto
Luis Cosme Pinto

A mesma chave e a mesma porta. Décadas de convivência íntima na rua da Bica, na Freguesia do Ó. De repente, as duas deixam de se entender. Uma não abre mais a outra.

Amadeu insiste, mas a chave não entra. Ele olha contra a luz. Esfrega a chave na calça, sopra, quem sabe um cisco? Nada.

Toca a campainha uma, duas, muitas vezes. Silêncio.

Amadeu liga pro filho que trabalha ali perto. Rodrigo chega da oficina despenteado e com o macacão vermelho. Ele não sabe direito como começar. Então, inspira fundo e dispara a falar.

“Pai cê pisou na bola. A mãe viu teu celular. A mãe disse que já tava de olho nessa tal de Betina faz tempo. A mãe falou pra mim e pra Flavia que você não pode mais entrar aqui. Eu falei pô cês tão juntos há 40 anos. Dá uma chance pro pai.”

- Eu não dou é mais nada para esse peste do seu pai. Chega! Agora ele vai aprender e vai aprender bem longe daqui.

“Aí, ela chegou pra mim e pra Flavia e deu as chaves novas da casa. É por isso que a sua não tá abrindo, entendeu”?

Amadeu, 62 anos, açougueiro aposentado, atualmente motorista de aplicativo com carro alugado, só consegue falar quando Rodrigo abre a palma da mão. Prateada e reluzente, ali está a chave que ele fez para o pai, sem a mãe saber, claro.

Amadeu pega a chave. Rodrigo alerta que é melhor o pai entrar, pegar suas coisas e dar o fora.  

“Aliás, pai, se a mãe perguntar, não fala que te dei a chave. Como a Flavia tá viajando, ela vai ter certeza que fui eu”.

Amadeu me conta tudo isso enquanto tenta superar um congestionamento em São Paulo. Até alguns minutos, era eu um passageiro e ele um motorista, mas a história dramática de separação e ciúme nos aproximou.  

- Betina é uma mulher preta, um pouco mais escura que eu, nem gorda nem magra, mais ou menos da minha altura. Tem 33 anos e é mãe solteira de dois meninos.

- Como ela é?

- Eu acho bonita. De rosto e de corpo. Trabalha pra caramba e tá sempre alegre. Ela limpa os banheiros, vestiários e a lanchonete do campo de futebol que eu jogo às quintas-feiras.

Entre carros parados e motoboys atrasados, Amadeu conta mais.

- Logo no primeiro dia de trabalho dela a gente conversou. A Betina avisou que meu tênis estava desamarrado e eu me apresentei. Betina comentou que se eu usava a camisa 10 era porque eu era atacante. Eu ri, disse que era artilheiro e que ia fazer um gol pra ela.

- Foi aí que começou o namoro?

Amadeu me encara refletido no retrovisor.

- O senhor pode não acreditar.

- Chama de você...

- Você e o mundo podem não acreditar, mas eu não tenho nada com a Betina. Nunca relei nela. A gente se conhece há 5 meses e somos amigos. Nada mais.  

- Nada mesmo, Amadeu?

- Nada, eu juro. A única coisa, não sei se você entende, é que mesmo não rolando nem um beijo  eu ficava feliz dos colegas do futebol acharem que a gente tinha um caso. Eu me exibia, sabe? E como dava carona pra ela até o ponto de ônibus, o comentário era geral.

- Mas você queria ou não queria?

- Até hoje eu não sei.

- Se vocês não namoravam, porque a Estela te botou pra fora de casa?

- Ela soube que eu fiz um pix pra Betina de 220 reais e ficou uma fera. Já a Betina me deixou esse áudio meloso.

Amadeu desliga o rádio e mostra a mensagem. “Amadeu querido, que coração grande, nem sei como agradecer. Quinta-feira a gente se vê. Quero mais um gol, hein.”

- Meus filhos contaram que minha mulher entendeu tudo ao contrário. Achou que eu andava saindo com a Betina e que o futebol era mentira. Que eu chegava tarde em casa não porque depois do tal jogo tinha conversa com os amigos e sim namoro com a vagabunda, assim ela chama a Betina. O pix piorou tudo porque uns dias antes a Estela falou que estava com vontade de passear em Mongaguá e eu disse que não tinha dinheiro pro combustível.

- Você mentiu.

- Eu brinquei com coisa que não se brinca.

- Por que você não conversa com a Estela?

- Porque ela não quer.

A cada instante de congestionamento conheço um pouco mais da história de Amadeu, que tamborila os dedos no volante.

- Ela está muito brava, há cinco anos, eu tive um rolo. Foi com uma passageira, a gente saiu uns meses. Antes, nos tempos do açougue, eu também namorei a Marlene e teve a Sueli, de um samba na Barra Funda.

- E a Estela?

- Eu pedia desculpas e ela perdoava. Agora acabou. Ela cansou.

Amadeu engole em seco e eu provoco.

- E a Betina?

Ele dá o primeiro sorriso.

- Me chamou para dormir na casa dela.

- Uau.

- Não se anima não. Ela, as duas crianças e o cachorro dividem a mesma cama no quarto. No sofá da sala, fica a mãe dela. Eu dormi num colchonete com os pés pra fora e acordei com torcicolo. Agradeci e não voltei mais. Parei com o futebol e a gente nunca mais se viu. Ela já me pagou quarenta reais, daquela grana que eu emprestei. Ontem, a Betina me mandou essa novidade.

Amadeu mostra o celular. Numa foto, Betina está com os dois filhos e um rapaz forte e bonitão. Os dois de mãos dadas.

Amadeu me diz que essa é a fase mais difícil de sua vida. Mora numa pensão perto da Cracolândia. Come mal, trabalha muito e ganha pouco. Está triste com a vida e exausto de tanto dirigir.

- Amadeu, chegamos. É aqui do lado direito.

O carro para, mas Amadeu continua a falar e eu a ouvir.

Ele confessa que tentou se reaproximar de Estela. No início do mês, cortou o cabelo, passou colônia e parou o carro a uns 20 metros da antiga casa. Enquanto matutava se tocava a campainha ou telefonava para Estela, viu uma desconhecida abrir o pequeno portão daquela casa que também é dele. Uma mulher uns 5 anos mais nova que Estela. A convidada trazia uma pizza na mão direita. Na canhota, vinho e rosas.  

Amadeu piscou os olhos e se assustou ainda mais quando viu a convidada abrir a porta com a própria chave. A chave nova!

Quieto, escondido pelos vidros escuros, viu a luz da sala se apagar e algum tempo depois a do quarto se acender. A lâmpada do abajur. Ali, do lado esquerdo, em que ele sempre dormiu.

- Sei que você tem hora, Cosme...

- Continua, Amadeu.

- Só para terminar: às vezes eu acho que é pesadelo. Nunca imaginei que a Estela, aos 60 anos, depois de 40 anos de casada, quisesse outro relacionamento e muito menos com uma mulher.

- Posso escrever essa história?

- Pode, mas duvido que alguém acredite.

*Luis Cosme Pinto é autor de Birinaites, Catiripapos e Borogodó, livro de crônicas semifinalista do prêmio Jabuti 2024.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

Logo Forum