A nova PEC da Segurança e o velho dilema da violência estatal – Por Álvaro Quintão
Sob o pretexto da integração, PEC da Segurança pode reforçar modelos ineficazes e violentos que historicamente excluem e silenciam
O Brasil vive, há décadas, o dilema entre a urgência por segurança e o compromisso com a dignidade humana. A recente Proposta de Emenda Constitucional apresentada pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, devolve esse dilema ao centro da vida pública, e o faz com o peso de uma reforma estrutural.
A chamada “PEC da Segurança Pública” pretende constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), ampliar competências da Polícia Federal, instituir uma nova Polícia Viária Federal e integrar as Guardas Municipais ao rol dos órgãos de segurança pública. Trata-se de um movimento ambicioso, que busca resgatar a ideia de um sistema nacional, cooperativo e articulado, em um país onde a violência é, tantas vezes, expressão de desigualdade e ausência do Estado.
Mas toda ambição institucional, quando aplicada ao campo da segurança, exige vigilância redobrada. Porque é nesse campo que o Estado mais se aproxima do corpo do cidadão e, historicamente, é sobre os corpos negros, pobres e periféricos que esse Estado se faz mais brutal.
A PEC traz avanços formais. Instituir corregedorias com autonomia funcional e prever ouvidorias externas pode fortalecer mecanismos de controle que, no papel, inibem abusos. Garantir repasses estáveis aos fundos da segurança e do sistema penitenciário sinaliza preocupação com planejamento de longo prazo — embora não se saiba, ainda, se tais verbas terão destino mais reativo ou preventivo.
Contudo, há uma lacuna ética no centro da proposta: ela não enfrenta a cultura que nos trouxe até aqui. Multiplicar instituições sem transformar o ethos da segurança pública é como pintar os muros de um edifício corroído por dentro. O problema do Brasil não é a ausência de polícia, mas a ausência de limites claros para seu poder de agir, e, sobretudo, de responder por seus atos.
O dispositivo mais sensível da PEC talvez seja a inclusão das Guardas Municipais como forças de segurança ostensiva. Guardas municipais são, historicamente, corpo civil, de vocação preventiva, vinculado às prefeituras e mais próximo da dinâmica comunitária. Fornecer-lhes prerrogativas típicas de policiamento ostensivo e armamento progressivo, sem um projeto nacional claro de formação humanista, pode representar uma armadilha: o risco de replicarmos, nas ruas, o modelo de confronto e militarização que já demonstrou seus limites.
Não se trata de negar a importância das Guardas. Elas têm papel essencial na mediação cotidiana, na ocupação qualificada do espaço urbano, na interlocução com a população. Mas justamente por estarem mais próximas da cidade e de suas contradições, merecem um lugar de protagonismo no cuidado — não no confronto.
A PEC também anuncia a criação de uma Polícia Viária Federal, substituindo a Polícia Rodoviária e a Polícia Ferroviária, com competências ostensivas inéditas para o nível federal. O país, que nunca teve uma polícia ostensiva federal nos moldes propostos, entra aqui num território delicado. O modelo federativo brasileiro não comporta, sem forte risco de sobreposição e conflito, a centralização de comandos operacionais. A experiência da Força Nacional, ainda que irregular do ponto de vista normativo, mostra que intervenções federais devem ser excepcionais, subsidiárias, coordenadas — e jamais uma regra constitucionalizada.
O combate às milícias e ao crime organizado é, sim, tarefa de Estado. Mas sua eficácia está menos em aumentar o número de fardas e mais em recompor a confiança pública nas instituições. Nenhuma lei ou emenda será capaz de conter o avanço do crime se o Estado continuar ignorando que a desigualdade é sua aliada silenciosa. Nenhuma PEC substitui o compromisso com a educação, o urbanismo, a justiça social e a inteligência estratégica.
O Brasil precisa enfrentar o crime com rigor, mas precisa — ainda mais — enfrentar-se. Porque a violência que hoje vitima tantos cidadãos não é apenas obra de facções. É, muitas vezes, a continuação de uma lógica estatal que nunca se reconciliou com os direitos humanos. Essa lógica precisa ser enfrentada, inclusive, quando se veste com a solenidade de uma proposta constitucional.
A PEC de Lewandowski acerta ao propor integração e planejamento. Mas erra, talvez por omissão, ao não declarar com todas as letras que a segurança pública deve ser orientada, acima de tudo, pela preservação da vida. Constitucionalizar a segurança sem constitucionalizar a vida é uma contradição que pode custar caro.
Que a segurança pública brasileira caminhe para a racionalidade, mas que jamais abdique da sensibilidade. Porque um Estado que busca eficiência sem ética, poder sem responsabilidade e ordem sem justiça pode até ser mais forte — mas será, sempre, menos democrático.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.