CINEMA

Festival do Rio 2025: Balanço geral e recorde de filmes dirigidos por mulheres - Por Filippo Pitanga

Crítica dos filmes: “Sem dó, nem piedade”, “Virtuosas”, “Quarto do pânico”, “A hera” e “Como tornar-se uma galinha d’Angola”

Escrito en Opinião el
Jornalista e advogado, crítico, curador e professor de cinema
Festival do Rio 2025: Balanço geral e recorde de filmes dirigidos por mulheres - Por Filippo Pitanga
Cena de "Virtuosas". Divulgação

Chega ao fim esta edição histórica do Festival do Rio 2025, o maior da América Latina, que contou com um número recorde de filmes realizados ou codirigidos por mulheres em todas as seções. E, celebrando tal marco, vamos dar enfoque, neste balanço final, a produções assinadas por algumas destas incríveis cineastas.

Para destacar e ficar de olho na trajetória de alguns dos filmes da lista do Festival do Rio este ano, quando começarem a estrear no circuito ou nos streamings (ou em outros festivais, como na Mostra de SP que começou agora e já tem reprise de alguns destes), é interessante nos valermos da reflexão levantada por um dos próprios longas-metragens da seleção, “Sem dó, nem piedade”, cuja provocação, exemplificada logo abaixo, pode atravessar a análise do restante da presente lista, que contém ainda grandes mulheres como Cíntia Domit Bittar, Gabriela Amaral Almeida, Ana Cristina Barragán, Rungano Nyoni etc.

Cena de "Sem dó, nem piedade"

Vamos começar pela diretora alemã Isa Willinger que, inspirada na saudosa cineasta ucraniana/soviética Kira Muratova, propôs um documentário acerca da intrigante pergunta: "o cinema feito por mulheres é mesmo mais agressivo, mais duro?". No longa "Sem dó nem piedade", exibido com exclusividade no Festival do Rio 2025, ela entrevistou colegas do calibre internacional de Céline Sciamma, Ana Lily Amirpour, Alice Diop, Catherine Breillat, e muitas mais. 

Haveria um silenciamento histórico e uma necessidade de reapropriação das narrativas com violência de gênero na ficção para despertar o boom do cinema dirigido por mulheres em resposta a isso? E não apenas na sétima arte, como podemos acrescentar, igualmente, na contemporaneidade da pintura, literatura etc, com nomes como Mariana Enríquez, Han Kang, Socorro Acioli, Eliana Alves Cruz? 

E o que seria esse "olhar cinematográfico"? Esta agressividade e dureza, seria no sentido gráfico, ou psicológico? Reproduziria um padrão herdado do "male gaze" ou seria parte denunciativa de um "olhar feminino" ou, até mesmo, romperia com qualquer padrão anterior, e estaria mais para um "olhar disruptivo"? Esta premissa valeria tanto na representação na telona quanto na representatividade atrás das câmeras? Valeria para se tentar fazer um cinema diferente, anticapitalista e antipatriarcal?

É interessante ver as respostas diferentes das entrevistadas, cada qual com cenário próprio conforme proposto pelo filme, condizente com suas personalidades. Algumas confiantes em se apropriar do monopólio no cinema da linguagem masculina, como forma de subversão. Já outras, optantes pela contramão, de não reproduzir normas, de que há formas diversas de filmar. Nomes como Nina Menkes ("Brainwashed: Sex-Camera-Power") e Joey Soloway ("Transparent") criaram verdadeiras teses provocativas de suas obras para oferecer alternativas. E, nas frestas mais relevantes e possíveis deste documentário em tela, mais do que na auto-análise de suas linguagens e obras (irresistível por si só), a melhor parte talvez sejam as trocas justamente entre elas mesmas, quando mencionam os trabalhos e influências umas nas outras (Menke sobre Diop, por exemplo) -- inclusive, na enorme reverência à Muratova, saudoso nome que inspirou o projeto. Tudo isso faz deste longa uma pesquisa imperdível, até como lente de aumento na análise dos próximos filmes deste balanço. 

Portanto, a lista de críticas logo abaixo prioriza obras que dialoguem com esta reflexão, permeando disrupções com gêneros mais provocativos e assertivos como o terror, a distopia, o thriller, fantasia, queer e realismo maravilhoso:

A declaração mais elegante e sofisticada na construção de gênero este ano, decerto, foram dois longas-metragens brasileiros bastante aguardados, “Virtuosas” de Cíntia Domit Bittar e “Quarto do pânico” de Gabriela Amaral Almeida. Ambos superando todas as expectativas, especialmente em valor de produção: seja com fotografia, arte e locações que deram um visual milionário para orçamentos respectivamente enxutos; bem como com direção de atores e elencos estelares, dignos de entregas no nível da liberdade de projetos independentes que blockbusters jamais permitiriam -- diante do risco de retorno de investimento -- mas que, aqui, equilibram-se entre autoralidade e alto potencial de massas.

O primeiro supracitado, “Virtuosas”, é a estreia em longas-metragens de ficção na já extensa carreira de Bittar -- que conta não apenas com a direção de seus próprios curtas-metragens multipremiados, com as produções da Novelo Filmes (da qual é uma das fundadoras), acumulando ainda funções talentosas de roteirista, montadora etc em trabalhos mis de terceiros; bem como em ativo engajamento em funções de representação política emancipatória pelo nosso audiovisual brasileiro. E tudo isso está em seu filme, quase tal qual uma grande tese, mas não didática, e sim imersiva, dentro da corrupção das instituições pelo olhar feminino, a nos colocar em alteridade com um antagonismo político à própria democracia que tanto defendemos, tudo pra compreender quando começa a hipocrisia e até onde vai a contaminação de um discurso de legitimação da opressão e intolerância pelos opositores dessa mesma democracia (num desconforto intencional).

O filme acompanha dois pontos de vista principais: o da influenciadora e "life coach" conservadora e religiosa, de extrema direita, Virgínia (interpretada com sutileza maquiavélica e fria voz de comando por Bruna Linzmeyer), e uma das ganhadoras do sorteio para o retiro chiquerérrimo de mulheres "belas, recatadas e do lar" com a respectiva influenciadora, na figura da misteriosa e inicialmente contraditória Germina (encarnada pelas camadas de Maria Galant) -- que guarda um ou dois segredos... 

Nem precisamos de spoiler para saber que não apenas as duas, porém todas as outras mulheres do retiro irão começar a destrinchar seus recônditos e mazelas mais vergonhosas ao longo da estadia isolada, gerando um grande confronto ao final, que transbordará no gênero de cinema que a diretora Cíntia domina tão bem: thriller, toques de fantástico e terror, mas sendo uma grande surpresa a elegância na contenção em "slow burn" (técnica de cozimento lento) com que a cineasta escolhe fazer isso.

Aquele valor de produção retromencionado (coassinado por Ana Paula Mendes) é intensificado por certas decisões que advém ritmicamente com tudo isso. Seja o fino controle mantido pela protagonista/antagonista Virgínia (quase um alter ego distorcido num espelho de ponta-cabeça da própria diretora), que rege o belíssimo retiro isolado na floresta como maestra defronte sua orquestra: Seja com a iluminação cartesiana escalonada entre a luz natural diurna, no casarão de vidro, ao breu noturno, sob focos artificiais, que vão conduzindo as outras personagens e suas sombras feito gado; ou com as palhetas ironicamente homogêneas de pastéis, de rosa, cinza e verde da natureza lá fora, ante o contraste com a explosão de cores fortes da gastronomia, sempre servida plasticamente como personagem disruptivo à la Peter Greenaway, na arte de Dicezar Leandro... 

Temperos de extremo requinte para o cozimento em banho Maria que realçam os pequenos detalhes da atuação (o anel de rubi de Virgínia e o cabelo atrás da orelha); das composições babadeiras na trilha de Daniel Becker e Pedro Santiago; do figurino camp, assinado por César Martins (entre a opulência, o brega e a contracultura queer como ironia interna em face do heterocisnormativismo tóxico externalizado); e da mise-en-scène (a coreografia dos corpos, a arquitetura dos zênites, closes e superfícies reflexivas pré-desmoronamento, antes de escancarar o quadro em grandes planos abertos afora do confinamento...).

São estes detalhes que vão lentamente implodindo em desobediências alheias, mesmo dentro do espaço de controle absoluto (e, em parte, exatamente por causa dele), em que a misteriosa Germina (Galant, já se rebelando), a esposa do político (Juliana Lourenção, dando vida ao colapso nervoso de sua personagem), e até a funcionária subserviente e obcecada pela chefe (Brisa Marques, numa grata surpresa sensual) vão se mostrando notas dissonantes provocadas pela condução de Bittar a desafiar sua representante-mor Virgínia. Aliás, este exemplar harmoniza muito bem em diálogo com "Medusa" de Anita Rocha da Silveira, cujas mulheres jovens poderiam ter amadurecido em ricas matriarcas que aprenderam (ou não) a manipular melhor os jogos de poder em “Virtuosas”.

Assim como em toda obra autoral em relação à sua autoria, estas personagens são alter egos da diretora/roteirista (em texto coassinado por Fernanda de Cápua), mesmo aquelas que lhe são paradoxalmente opostas, porém criações de sua denúncia maior como parte de vasta pesquisa sobre a ascensão do fascismo no Brasil e o envolvimento de bancadas religiosas de cunho político (pouco ou nada representativas em relação à fé e seus fiéis, apenas manipuladoras de poder) -- algo que pouca gente estava ousando tocar a fundo pelo ponto de vista deles mesmos. Além de pesquisas pregressas na estética do terror e fantástico, como referências reais de mitos e folclores, alegorias e artefatos, nos trabalhos anteriores de Bittar. 

Agora, ela mergulha as mãos no caldo das bruxas a partir de simbologias locais de Porto Alegre, e cruciais a leituras de feminismos em qualquer tempo, mesmo se tais personagens possam estar em negação quanto à sua ancestralidade. Um filme sofisticado, compatível ou até com visual mais caro do que de produções mundiais do naipe da A24 à Blumhouse, inaugurando uma novíssima fase de "horror chic" no Brasil, desconstruindo as grandes riquezas ora tributadas pelo cinema de gênero. -- O longa irá reprisar na Mostra de SP (vide datas ao final do texto).*

“Quarto do pânico” é uma nova adaptação do cult homônimo de 2002, dirigido por David Fincher ("O Clube da Luta") e roteirizado por David Koepp ("Jurassic Park"), ora transposto para a cultura brasileira e o tempo presente (2025) com direção inspirada de Gabriela Amaral Almeida ("O Animal Cordial") e roteiro de Fábio Mendes ("Dom"), no que pode auxiliar a revitalizar e consolidar o thriller policial com toques de terror e noir doméstico no nosso mercado interno da sétima arte -- já que o gênero já vinha se saindo bem nos streamings nacionais, como globoplay, mas ainda contava com incursões tímidas no circuito de salas de cinema.

Cena de "Quarto do pânico"

Não se trata necessariamente de um remake, pois nem a produção nem a intenção é esta, assim como os signos e códigos originais mudam drasticamente numa "livre tradução" territorial e linguística para cá. Só o fato de se passar em meio à nossa estatística de criminalidade, à opressão na diferença de classes no Brasil e à interseccionalidade étnico-racial, de gênero, entre outras, pode-se dizer que temos essa nova miscelânea ímpar no caldeirão cultural. 

A cineasta Gabriela Amaral não é estranha ao thriller com toques de terror, gore e até conto de fadas sombrio, como em suas obras anteriores, evocando pinceladas discretas de elementos desde uma assombração fantasmática ao "body horror" (horror corporal), no qual o corpo e a performance dos atores pode ir se desconstruindo visceral e literalmente (em carne, ossos e sangue). Já Fábio Mendes traz segurança no texto ao lidar com sua assinatura familiar de tropos policiais de corrupção do indivíduo e ambivalência moral, como do ótimo trabalho na série "Dom".

A espinha dorsal da matéria-prima permanece quase similar neste novo exemplar, com uma diferença já drástica na base de sua estrutura: a protagonista não encontra mais o tal quarto do pânico por acaso na compra da nova residência apenas por capricho de ascensão social, e, sim, na realidade, por busca intencional de algo que protegesse a si e a filha de traumas e luto pregressos. Ao invés de o terceiro vértice da pirâmide ser o ex-marido divorciado, agora temos um pai preocupado com a filha e a neta. Será que existiria possibilidade de se escudarem numa bolha inescrutável? 

O abismo de classe permanece lá, bem como tangenciado por questões étnico-raciais, porém ampliado por duas identificações outrora lacunares, ora com abordagens que preenchem esses pontos cegos e ora reconhecem um identitarismo mais direto. A primeira é que, apesar de no longa original, como aqui também, dois ladrões não serem criminosos de carteirinha (na teoria), pois um é herdeiro do tesouro secreto e o outro é um dos profissionais que constroem os quartos do pânico, essa mesma dupla, na nova versão, ocupa esses arquétipos com menos maniqueísmo com riscos e tentações próprias... Lembremos do bordão da novela "Vale Tudo": quem mente, rouba, e quem rouba mata. 

A segunda questão é a supracitada interseccionalidade de gênero, raça e classe. Se, na matéria-prima, temos a escalação de um renomado artista negro estadunidense, Forest Whitaker ("Ghost Dog"), como o "antagonista" com mais consciência social e solidária dos 3 ladrões, na adaptação brasileira temos o igualmente talentoso André Ramiro ("Tropa de Elite"), dono de um dos timbres mais marcantes, cuja densidade já preencheria sozinha todo o desenho de som. Porém, é na sua motivação (como pai tentando salvar um filho com o dinheiro roubado), que ele irá espelhar a luta da protagonista por salvar sua própria filha (esta fruto de um casamento interracial). São essas associações que dão mais humanidade aos sujeitos narrativos, e agregam ao grande elenco, encabeçado por Ísis Valverde e Marianna Santos, acossadas no quarto do pânico, além de Marco Pigossi e Caco Ciocler que se acrescentam a Ramiro tentando arrombar o lugar.

Almeida já havia trabalhado anteriormente com a diretora de fotografia Barbara Alvarez em inúmeras experimentações para se criar tensão, como na opressão de classes a partir da perspectiva dos funcionários de um restaurante que viravam reféns de um assalto seguido de sequestro em "O Animal Cordial" (2017), com muitos enquadramentos abaixo da linha dos olhos e da cintura, já que várias das situações envolviam render e amarrar os personagens em planos-conjunto ou closes de libertação. Já em “Quarto do pânico”, a foto fica por conta de Fabricio Tadeu que, além de várias produções policiais, também assinou cults do cineasta Kleber Mendonça Filho ("Aquarius"), e aqui se junta à visão autoral de Almeida para criar um dinâmico jogo de câmeras (dentro e fora da diegese dramatúrgica do filme), com muitos planos vistos de cima para baixo (plongée), por se tratar das câmeras de segurança da casa nas paredes e tetos vistas no telão de dentro do quarto do pânico. Na edição de Joana Collier ("A Suspeita"), estas cenas são intercaladas com outras em tempo real, dividindo o quadro entre os núcleos de personagens no interior e fora dele, que ajudam a formar algumas montagens de tirar o fôlego, literalmente. 

Adicionemos, então, pitadas do trabalho de som por Daniel Turini, parceiro de longa data de Almeida (além de bastante sazonado em cinema de gênero), coassinado por João Victor Coura, que brincam com o contraste entre os pontos de escuta e os silêncios de comunicação dentro e fora do bunker do quarto, já que as câmeras de vigilância estão mudas e só captam a imagem, existindo, contudo, um único comunicador de dentro para fora de lá. Tudo isso incrementa bastante ao tensionamento, além da reprodução dos sons ambientes na passagem das horas ao longo da madrugada como elemento de suspense, desde cigarras a pássaros no nascer do dia, nos momentos mais climáticos em que dá pra sentir como se até o som de um fio de cabelo no chão pudesse eclodir em fatalidade.

Almeida ainda inova na linguagem da adaptação trazendo elementos visuais diferenciados, como a semiótica das cores na iluminação (da cena inicial entre o semáforo vermelho e o verde à invasão da casa quando essas cores se repetem para alertar da intenção das personagens divididas entre a ameaça ou a segurança). Bem como o piscar de lâmpadas como sinal fantasmático também não existia no original, mas dá mais valor a personagens mesmo quando ausentes. Sem falar que a própria locação é elegantíssima e cujo design intrincado lembra bastante o aproveitamento único como personagem arquitetônico dos cenários de "Eu sei que vou te amar" (1986), de Arnaldo Jabor -- jamais rivalizado no cinema brasileiro, pelo menos até então.

O roteiro se encaixa perfeitamente em demandas que dialoguem ante as terríveis estatísticas de violência contra a mulher (os assaltantes citam explicitamente em diálogo que achavam ser mais fácil por não haver um homem em casa), bem como na complexidade dos índices de criminalidade no país, já que a disparidade de classes, o encarceramento em massa da população negra e a impunidade para pessoas brancas de elite costumam ser tabus ainda -- vide a impagável cena do elitismo de uma força policial de bairro nobre de São Paulo.

Por último, mas não menos importante, a entrega do elenco possui uma química raramente tão entrosada em thrillers. Tudo isso de modo que as protagonistas (Valverde e Santos) conseguem se comunicar apenas com o olhar, o suor e lágrimas, e os antagonistas ainda nos presenteiam com dialética acertada, a exata antítese da síntese da mãe e da filha, pois é das fissuras do plano imperfeito e contestado a todo minuto que sobressaem as melhores tiradas. Destaque extra para a escalação paradoxal de Marco Pigossi, após período em que o ator passou afastado do Brasil, morando nos EUA, e justamente interpretando neste longa um personagem norte-americanizado, cujas expressões e citações em inglês acabam sendo hilariantes e uma espécie de excelente autoparódia pelo fato de estarmos vendo uma adaptação brasileira de obra estrangeira.

Uma obra que enriquece a filmografia de Almeida, além de possuir alto potencial de furar a bolha de nosso circuito tão colonizado e virar um sucesso instantâneo -- provando que poderíamos fazer algo até superior a Hollywood, se quiséssemos, mas que fica muito melhor à moda brasileira.

Já a coprodução internacional de origem equatoriana, “A hera” ("Hiedra"), da cineasta Ana Cristina Barragán, foi a maior surpresa no Festival do Rio 2025, e também um dos longas mais subestimados, infelizmente -- ainda que munido do prêmio Horizonte de roteiro em Veneza e de menção especial em San Sebastián.

Cena de "A Hera"

A diretora já se mostrava extremamente criativa desde seus curtas e longa de estreia, "Alba" (2016), disponível na Mubi-- leia crítica por Samantha Brasil linkada aqui -- com temas recorrentes de amadurecimento e 'coming of age'. Agora, ela vai desdobrar o tema em 2 perspectivas aparentemente opostas, emparelhadas pela montagem (de Iván Mora Manzano): uma jovem mulher adulta, cuja infância foi roubada por forte trauma; e de um órfão adolescente obrigado a amadurecer rápido demais. Cada um deles deseja encontrar o que falta dentro de si... e é na falta de respostas definitivas que o roteiro de Barragán mais possui a ganhar.

Sem precisarmos entregar muito da trama, basta dizer que trabalhamos com suposições e indícios bem colocados de forma sensorial, acompanhando uma câmera muito próxima do rosto, olhares e sentimentos das personagens por pelo menos dois terços da trama, perante mínimas informações: o trauma supracitado que fez a protagonista Azucena (interpretada com dedicada profundidade contrita por Simone Bucio) largar uma ascensão premiada na ginástica olímpica, e viver complicações de saúde por ter dado à luz com apenas 13 anos de idade, agora com 30...; bem como a turma de jovens órfãos, na idade limite de serem expulsos do sistema, sem perspectiva de adoção, e com uma aproximação um pouco constrangida por parte de Azucena, que demonstra interesse especial por um deles, Julio (Francis Eddú Llumiquinga), que pode (ou não) ser o filho que ela abdicou por ordem de sua mãe e da tenra idade. -- Quando ainda nem possuía auto-ingerência de sua vida.

O mais intrigante de tudo isso é justamente a abordagem de estranhamentos edipianos, pois não é só das sutilezas silenciosas do roteiro que vive o diferencial da obra, com certa sensualidade velada e elementos disruptivos (há de exemplo a metáfora com os coelhos de estimação, símbolos de procriação e de Páscoa/ressurreição). Isso porque Barragán se sobressai igualmente por sua direção segura e inspirada, que sabe o que está fazendo a cada curva e inflexão. Ela começa sua materialização narrativa do primeiro ato já demonstrando enorme carinho e respeito na alteridade, num paralelo entre os dois coprotagonistas, ambos carentes de afeto, mas solidários em relação ao cuidado com o próximo: ela com o avô, que alimenta, banha e lê histórias; enquanto ele ajuda as freiras a tomar conta dos recém-nascidos do berçário no orfanato.

E os paralelos do roteiro com a câmera continuam, sempre de forma inventiva, como no fato de Azucena ter sido uma ginasta promissora, que viu seu talento ser suprimido num repente da vida, influenciando inúmeras escolhas de enquadramento: vide as cenas de ponta-cabeça, ou os movimentos na barra olímpica, levando a personagem a extremos de dor emocional extenuante e tentativa de superação, entre suor, saliva e lágrimas. Nada precisa ser dito, pois já demonstra em imersão. 

A mesma coisa com as brincadeiras dela junto aos órfãos, como o pique-pega em câmera lenta -- cuja montagem faz quase parecer que se poderia paralisar ou voltar no tempo, magicamente, de modo a permitir que eles se encontrassem na infância perdida de ambos... Afinal, nenhum pôde ter um ao outro quando talvez mais precisassem. Azucena é tão vítima quanto Julio, e gostaria de recuperar seu filho tanto quanto aquilo que ela também não teve. Às vezes, ainda é obrigada a lembrar ser a adulta ali, quando lhes ensina boliche, ou lhes dá de comer e até corta o cabelo da turma.

Até aí, seria a típica narrativa familiar potencialmente instigante... Contudo, Barragán aumenta as apostas com a interseccionalidade de classe, gênero e... etnia! E é neste ponto que seu longa alcança outros patamares não apenas da filmografia equatoriana contemporânea, quanto de seu próprio currículo. A questão dos povos originários e do colorismo nas várias Américas Latinas ainda sofre de extrema subrrepresentação. O fato de Azucena ser branca e ter uma condição de vida segura, enquanto Julio não possui nada disso, e aquiesce tal fato para ela na diferença étnico-racial entre eles, é um abismo assaz pungente. Inclusive, poderia mesmo ele sequer ser filho dela? Ou ela escolheu aleatoriamente uma fixação para se projetar? Esta pergunta nem precisaria de resposta, e, o maior trunfo do roteiro, precisamente por esta razão, é não precisar responder nada. Só sugerir, despistar e confundir. 

Querendo parecer mais maduro do que é, mais autossuficiente, e precisando trabalhar desde cedo para se sustentar, Julio se apaixona por aquela mulher que o ajuda e nada pronuncia sobre quaisquer porquês... Ela mesma nem saberia como abordar isso. Ele ruma para duas enormes decepções novas: perder um primeiro amor e, ao mesmo tempo, a confiança na única mulher que de fato deseja amá-lo, mesmo que não da forma almejada. Um segundo matricídio. Ou será? Pois o filme deixa propositalmente a maior parte destas perguntas no ar, acertadamente. 

Numa ótima sacada do roteiro de Barragán, através da fotografia de Adrian Durazo e do som de Nicolás Fernández Pérez, a obra modifica radicalmente a entrega do terceiro ato, filmando, além de Quito, em Cotopaxi, e expandindo o enquadramento para planos abertos em campos belíssimos sob os pés de um vulcão em plena atividade (algo raro em produções latinoamericanas contemporâneas, ou em geral, como no igualmente belo "Ixcanul", do guatamalteco Jayro Bustamante). A metáfora é explícita, bem como as cinzas que chovem e os estrondos ensurdecedores a cobrir suas vozes e pensamentos, agregando um tantinho de realismo maravilhoso lírico, tanto caro à dramaturgia latinoamericana. E, talvez só aí, enfim, o eterno mito da "Pietá" possa trazer algum conforto a eles... Ou será? Eis uma pequena grande obra!

Agora, sobre o mais recente longa da cineasta da Zâmbia, radicada na Inglaterra, Rungano Nyoni, “Como tornar-se uma galinha d’Angola” ("On Becoming a Guinea Fowl"), foi ganhador de melhor direção na mostra Um Certo Olhar de Cannes em 2024, tanto quanto o mesmo prêmio e performance revelação para Susan Chardy, ambos no British Independent Awards. Nyoni demonstra crescente maturidade, num longa que mira mais alto na dificuldade artística em se explicitar menos no texto, e discorrer muito da trama nas entrelinhas visuais -- e será que este risco compensa desta vez?

Cena de “Como tornar-se uma galinha d’Angola” 

A estranheza já começa pelo título. Por acaso você sabe o que tem de especial numa galinha d'Angola? Seja como espécie ou como elemento cultural de certos territórios africanos? A resposta pode ser muito mais curiosa do que pensam, e talvez precisemos dar um passinho para trás de modo a poder avaliar a linguagem desta importante cineasta.

Há nomes na sétima arte internacional que passamos a seguir com apurado interesse, especialmente após alguma obra que nos tenha atravessado de modo imortal. Este é o caso do seminal filme "Eu não sou uma bruxa" (2017), de Rungano Nyoni, coprodução da Zâmbia e Reino Unido, no qual uma órfã de 8 anos é acusada de bruxaria e levada para um acampamento manipulado por agentes corruptos do governo como ponto turístico. Munida de efeitos visuais práticos e direção de arte 100% inventiva, representando tal acampamento e suas feiticeiras taxadas a contragosto, a diretora demonstrava enorme perícia, desde já, para a pantomima e a estética do absurdo e non sense naturalista, a partir de denúncias reais, porém, que podiam se emancipar através de 'usar o feitiço contra o próprio feiticeiro'. 

Já em seu novíssimo exemplar, “Como tornar-se uma galinha d’Angola”, acompanhamos toda uma sequência inicial do prólogo e do primeiro ato desde já fascinante, despertando um incômodo proposital no espectador. Começamos já seguindo a protagonista Shula (Susan Chardy), que se depara com o corpo do tio Fred no meio da estrada enquanto dirigia para uma festa à fantasia, com um look a caráter inesquecível desde já (máscara feita de coroa de brilhantes e óculos escuros para a noite, além de uma roupa bufona similar a dos bate-bolas brasileiros). O absurdo desta coincidência é ambientado ainda melhor quando vai se revelando o estranhamento de regresso da boa filha que à casa torna, após temporada no estrangeiro (como, de certa forma, a própria diretora do filme), misturando a língua natal com o inglês, ao telefone, em número desconhecido para o seu pai, pois teve de comprar chip novo na chegada -- e a primeira coisa que faz é se emcaminhar para a festa de outras pessoas que não aquelas teoricamente mais próximas, como família e amizades de infância. Mas por quê? Qual razão para o distanciamento e frieza? Uma fantasmagórica miragem de sua própria infância postada ao lado do cadáver na estrada talvez já prenuncie algo.

Após a ligação para o pai, a introdução da próxima personagem coadjuvante é tão inestimável quanto a própria, Nsansa (a excelente Elizabeth Chisela), completamente inebriada (como estará por toda a projeção, intencionalmente anestesiada dos traumas familiares), dançando ao som do batidão eletrônico num som portátil, junto com a garrafa que entorna pela goela, enquanto performa para os faróis do carro noite adentro, já que a amiga não lhe abre nem portas nem janelas...

Só esta introdução já seria arrebatadora por si só..., mas é a continuidade a nos inserir na história que vai ambientando as violências silenciosas e silenciadas de certas tradições atravessadas por poderes anacrônicos, de classe, gênero e geracionais. A idade é um fator pesado nas mazelas de domínio social, já que a infância (especialmente a feminina) é impotente perante um legado patriarcal que pode deserdar as próximas gerações financeira, física, mental e emocionalmente. Vamos descobrindo que até as mulheres mais velhas são reféns ou perpetuadoras do sistema, pois, um dia, elas mesmas sofreram as mesmas consequências, ou, caso tentassem quebrar o silêncio, sofreriam castigos ainda piores.

O mote principal não é tão misterioso assim, talvez, no máximo, apenas o seu nível de alcance, e futuras consequências. O que destaca mesmo o segundo ato no restante da jornada é a forma como Nyoni resgata e utiliza o guarda-chuva da linguagem fantástica de obras anteriores num realismo ora mais onírico, a fundir bem o sonho, pesadelo e a vigília. Vide o emaranhado de ritos e costumes através do figurino riquíssimo (assinado por Estelle Don Banda) ou através da divisão de cenários por hierarquia e atos de servitude, como no preparo da comida e dormitórios (assinados por Chelangat Lebo e Victoria Richards). Tanto que os homens demoram dois terços da projeção para surgir em primeiro plano (pois suas manipulações são sentidas sem eles sequer precisarem aparecer fisicamente). 

No entanto, o destaque mesmo fica com o uso elemental da água como ligação entre as personagens femininas, com muitas conotações, sempre alagando cenários específicos que mostram a opressão da diferença no tratamento de gênero. Efeito prático relativamente simples de usar que, somado aos efeitos sonoros de imersão no delírio, vide o cacarejar das galinhas, por exemplo, transborda num dilúvio de dormência. 

Visualmente, estas são instâncias que enriquecem tanto semiótica quanto plasticamente a obra, porém, afora o subtexto, de fato as sutilezas estavam evidenciadas bem antes de as camadas visuais suprirem o texto, o que talvez poderia ter sido enxugado um pouco mais no tratamento do roteiro ou, até, ter sido invertido na montagem (de Nathan Nugent), trazendo algumas cenas mais para o início (como a internação da prima), e outras para o final (como o vídeo no celular da mesma).

Ainda que não seja de forma alguma a proposta da autora necessitar de segredos ou reviravoltas de trama, tais cogitações poderiam criar melhor fluidez na já ótima tensão contínua que fica mais a cargo da imagem do que de qualquer recurso de diálogo ou desenvolvimento de personagem, pois já estava tudo lá, especialmente nos silêncios (mas que a montagem poderia ter incrementado). 

Independentemente, e a despeito de o filme também possuir muitos finais em sua tentativa de abarcar todo o leque narrativo aberto até o seu potente desfecho (e, mesmo aqui, a montagem poderia ter invertido algumas seqüências, para que não saturasse o tempo de projeção da pungência umas das outras), o fato é que a trajetória tanto das impagáveis Shula e Nsansa, da crônica social e da talentosa cineasta em si vão se consolidando em mise-en-scène imperdível de se acompanhar. Dá real prazer cinéfilo seguir cada passo de Nyoni na sétima arte. Contudo, a esta altura, e as galinhas d'Angola, pode-se perguntar... O que têm elas a ver com toda essa narrativa? Basta dizer que elas são mais do que apenas herança cultural, e podem não ser tão indefesas quanto aparentam, capazes de ensinar um ou dois truques a nós seres humanos.

É válido fazer um elogio final à excelente curadoria nesta edição do Festival do Rio 2025 de Ilda Santiago, com o maior número de diretoras mulheres até hoje! Parabéns pelo feito e que tenhamos cada vez mais narrativas plurais e inovadoras como estas. 

* Reprises de “Virtuosas” na Mostra de SP, horários de exibição abaixo:

CINESESC

27/10

21:00

ESPAÇO PETROBRAS DE CINEMA SALA 3

29/10

18:00

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