Paira sobre o legado de Gabrielle Chanel (1883-1971), Coco, a estilista que transformou o cenário da moda no início do século XX a controvérsia de ter ou não colaborado com o regime nazista durante a ocupação da França pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial.
O tema polêmico e que divide opiniões de historiadores e biógrafos é abordado na nova série da Apple TV, The New Look, que conta a história de outro ícone da moda e contemporâneo da criadora do pretinho básico, Christian Dior (1905-1957).
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Na série, Chanel é vivida por Juliette Binoche. A mais famosa estilista francesa da época é retratada como uma mulher apegada a luxos, sujeita à traições contra o círculo íntimo de amigos e ciente da própria genialidade.
Os três dos dez episódios já disponíveis na plataforma de streaming da gigante de tecnologia no Brasil relatam que, apesar de ter fechado sua maison quando os alemães invadiram Paris, capital da França, Chanel costurou alguns acordos pessoais e profissionais com as forças de Hitler.
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Os meandros dessa colaboração com o regime nazista, que renderam à genial estilista até nome secreto, são a linha mestra da presença da estilista na série.
Chanel, conta a série, tinha um quarto no luxoso hotel Ritz em um momento em que muitos indivíduos ricos deixaram suas casas durante a ocupação e optaram por se mudar para hotéis para serem mais econômicos.
No entanto, duas biógrafas de Chanel divergem em até que ponto a designer de moda interagiu com os nazistas quando ocuparam o prédio do hotel glamouroso em 1940. A revista estadunidense Times desta semana traz entrevistas com duas autoras de livros sobre a estilista.
A autora de "Coco Chanel: An Intimate Life" (sem tradução para o português), Lisa Chaney, atesta que a estilista "definitivamente socializou" com os nazistas.
The New Look retrata Chanel saindo com nazistas em pequenas reuniões na Cidade Luz, o que Chaney diz corresponder ao que o designer teria feito na vida real.
De acordo com Chaney, "não há nenhuma prova de que ela era, de alguma forma, realmente nazista por conta própria".
Já outra biógrafa da estilista famosa, Justine Picardie, autora de "Coco Chanel: A Vida e a Lenda", discorda dos fatos retratados na série sobre esse episódio.
Picardie observa que Chanel não socializava com vários nazistas no Ritz, e que ela só falava com eles quando precisava obter informações sobre o paradeiro de seu sobrinho francês André Palasse, prisioneiro de guerra dos nazistas.
Amante nazista
O único nazista com quem ela socializou está retratado na série e é um consenso entre pelo menos três biógrafos, foi o alto espião do serviço secreto alemão, o barão Hans Günter Dincklage, conhecido como Splatz e vivido pelo ator Claes Bang.
Splatz desempenhou um papel crucial ao envolvê-la nas operações de inteligência alemãs, e ambos negociaram uma constante troca de favores.
The New Look está correta ao afirmar que Chanel era íntima de Spatz. “Ela começa a ter um caso com ele na esperança de que ele ajude a tirar André do campo de prisioneiros de guerra”, diz Picardie.
Picardie, porém, comenta que a produção mostra apenas um lado do designer – concentrando-se apenas em suas associações nazistas sem mostrar que ela também teve um papel no movimento de resistência.
Chanel, pontua Picardie, permitiu que membros da resistência francesa assumissem sua casa no sul da França, conhecida como La Pausa. “Suas adegas foram usadas para esconder refugiados judeus”, garante a biógrafa.
Antissemitismo era moda na França
Outra biografia de Chanel, "Dormindo com o Inimigo – A Guerra Secreta de Coco Chanel", escrita pelo jornalista Hal Vaughan, pesa a mão ao descrever a estilista como uma antissemita.
Vaughan deixa de lado o glamour associado à incomparável ícone da moda para mergulhar nos detalhes do comportamento dúbio e, para ele, imoral de Coco Chanel em seu envolvimento com o nazismo durante a ocupação alemã na França entre 1940 e 1944.
O livro relata a origem na família pobre no interior da França, a infância difícil e a ida de Chanel para um orfanato de freiras na adolescência, onde foi exposta ao antissemitismo, prevalente em uma época em que muitos franceses nutriam aversão aos judeus, considerando-os os "assassinos de Cristo".
Segundo o escritor, a ocupação nazista e o alinhamento de Coco com o regime de Hitler não teria sido difícil, afinal ela é descrita por ele como uma antissemita.
De acordo com essa biografia, Chanel atuou como mediadora entre os alemães e suas influentes conexões, que incluíam o duque de Westminster, à época o homem mais rico da Europa e ex-amante dela, além do primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Winston Churchill.
A função primordial da designer de moda como agente era expandir sua rede de contatos pessoais no regime nazista. Por esse motivo, ela era categorizada como agente e não espiã, já que não conduzia investigações sobre a vida de terceiros.
Coco foi até mesmo utilizada em uma tentativa malsucedida de mediar a paz entre autoridades dissidentes de Adolf Hitler e Churchill na operação Modelhut (chapéu da moda em alemão), uma alusão à sua profissão de estilista, reconhecida por confeccionar chapéus masculinos para mulheres. Esse episódio foi registrado em The New Look.
Codinome na Inteligência Nazista
Em outra biografia, "Coco Chanel", do escritor francês Marcel Haedrich, a estilista ganhou até um codinome do serviço de inteligência alemão (Abwehr) e era identificada como a agente nazista com o número F-7124.
Haedrich afirma que Chanel era conhecida por sua língua afiada e nunca hesitou em expressar suas opiniões entre amigos. Em uma conversa com o autor dessa que é uma das várias biografias dela, expressou sem amarras seu antissemitismo que foi caracterizado como "veemente, antiquado e muitas vezes embaraçoso".
"Só tenho receio dos judeus e dos chineses, e mais dos judeus do que dos chineses", disse Chanel.
Sobrevivência e contradições
Esse ponto sombrio e mal ajustado da trama da jornada de Chanel nunca terá um acabamento. O jeito que a série reconta esse período desfiado e sem fluidez talvez seja o mais próximo que chegaremos a uma possível verdade sobre esse assunto.
Ninguém nunca vai saber o que se passava pela cabeça de Gabrielle. Os que sobreviveram aos horrores daqueles dias - infelizmente cada vez mais próximos de serem relançados em uma coleção de arremedo de mal gosto diante dos conflitos em curso neste 2024 - vivenciavam contradições, afetos, temores e tentaram sobreviver.
Para mim, The New Look já valeu à pena nesses primeiros episódios, pois desfez em mim a certeza sobre a índole de Chanel em sua relação com os nazistas. Agora sigo tecendo minhas dúvidas e imaginado as circunstâncias que podem, ou não, terem levado a designer a fazer o que fez.
O novo visual pós-guerra
A trama central da série da Apple TV é a trajetória de Dior. Na história da moda, o que aconteceu após 12 de fevereiro de 1947 em Paris é amplamente documentado. Naquele dia, esse outro gênio apresentou sua primeira coleção solo, marcando o início do chamado "New Look" (ou "o novo visual"), que reintroduziu a feminilidade volumosa após anos de conflitos e escassez.
Contudo, como Dior havia chegado até esse ponto, destacando que a moda havia resistido? The New Look, que estreou nesta semana na Apple TV+ com Ben Mendelsohn no papel principal, explora não apenas o percurso profissional, mas principalmente o percurso pessoal do estilista francês durante a Segunda Guerra Mundial, examinando como isso influenciou seu processo criativo.
Confira o trailer