DESPERDÍCIO

"Senna", série da Netflix, é sofrível, mesmo tendo produção impecável

Muito aguardada, a produção não acrescenta em nada e, em alguns casos, omite e deturpa

"Senna", série da Netflix, é sofrível, mesmo tendo produção impecável.Créditos: Divulgação / Netflix
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Qual é a função de um filme ou uma série biográfica? Principalmente quando o personagem a ser biografado é uma figura muito popular e que, em determinados grupos, alcança uma aura mítica… é reforçar todas as qualidades do personagem sem contradição alguma ou, justamente por ser uma figura popular, adorada, buscar trabalhar, claro, os aspectos positivos, mas também não seria o caso de explorar as contradições e fraquezas desse personagem, seus lados mais obscuros que conviviam com o lado, digamos, iluminado pelos holofotes?

Bom, a série “Senna” (2024), que acabou de estrear na Netflix, optou pelo caminho de apenas ressaltar tudo aquilo que todos já sabem sobre Ayrton Senna: que ele é considerado um dos maiores pilotos do mundo da F1, que possuía um estilo único ao pilotar, que travou brigas com a direção da Fórmula 1, que namorou a Xuxa e que era muito adorado por um Brasil que saía da ditadura (1964-85) e que tinha de lidar com altos índices de miséria e desemprego.

Mas, além de ficar apenas na superfície de Senna, o roteiro toma caminhos equivocados – e em alguns momentos constrangedores – ao ressaltar a grandiosidade de Ayrton Senna a todo momento. Dessa maneira, optaram pela estrutura narrativa de odisseia: da primeira à última cena somos bombardeados com a ideia de que estamos diante de um grande acontecimento, e este acontecimento é Senna... mas o problema é que isso já foi vivenciado pelo Brasil e, pela maneira como conta a história, a série não teve como objetivo apresentar Senna para outras gerações, mas apenas reforçar simbolismos que já existem em torno dele. Mas há mais problemas.

Como o roteiro optou pela odisseia do "maior piloto de F1 do mundo", essa trajetória não pode ter contradições, e os únicos conflitos permitidos são aqueles que vão reforçar a aura mítica do piloto brasileiro. Daí que o discurso religioso e antipolítica de Senna é reforçado na trama: de um lado, o crente; do outro, os ímpios que atuam no sistema que persegue... Ayrton Senna. Ou seja, um falso conflito é construído na trama.

Mas nem tudo é uma tragédia na série "Senna": o ponto alto do roteiro são os conflitos entre Senna e Alain Prost, que foi seu adversário e parceiro na McLaren. Nessas batalhas temos o único momento em que o brasileiro é confrontado e obrigado a refletir sobre seus limites e contradições. Aliás, o piloto francês foi uma das poucas pessoas que teve coragem de falar, ao vivo e a cores, sobre o fanatismo religioso de Senna e que, sim, muitas vezes ele podia ser desleal para se manter no topo (deveriam fazer uma série apenas sobre o conflito Senna x Prost).

Gabriel Leone como Senna/ Divulgação

Os amores de Senna

Outra questão bem polêmica do roteiro é a maneira como as companheiras de Senna foram retratadas: Lilian de Vasconcellos (Alice Wegmann) e Xuxa (Pâmela Tomé) – aliás, impressionante a atuação de Tomé como a Rainha dos Baixinhos – são retratadas, digamos, mais perto daquilo que pode ter sido.

No entanto, o roteiro optou por simplesmente limar a relação de Senna com Adriane Galisteu que, segundo todos os materiais disponíveis para consulta – capas de revistas e entrevistas –, era a que tinha tudo para seguir para um casamento. No entanto, preferiram transformar Galisteu em uma nota de rodapé na biografia de Ayrton Senna. Um horror.

Pâmela Tomé coo Xuxa

Desperdício de dinheiro

"Senna" só não é uma tragédia em absoluto por causa de seu elenco espetacular e sua direção e produção impecáveis.

O ator Gabriel Leone consegue reproduzir de maneira magistral todos os maneirismos de Senna; até mesmo os seus gritos quando conquistava um GP são idênticos.

Quem também merece destaque é a atriz Kaya Scodelario (Skins), que interpreta a jornalista Julia, que acompanha a trajetória de Senna desde a F2. Scodelario e Leone possuem uma excelente química em cena. A personagem interpretada pela britânica, filha de mãe brasileira, só não é melhor porque ela foi criada para reafirmar a todo momento que o brasileiro "é o maior piloto do mundo".

Apesar de um elenco preparado e de uma produção milionária, "Senna" não entrega conflito nem drama. Neste ponto, o documentário "Senna - O Brasileiro, O Herói, O Campeão" (2010) ainda é superior à série, pois questiona o personagem mítico e coloca em tela suas contradições e fraquezas.

Os anos 1992 e 1993 não existiram

Além de tudo o que já foi dito, o roteiro de "Senna" comete outro ato inexplicável: deletar os anos 1992 e 1993 da vida de Ayrton Senna. Essa decisão foi tomada porque, nesses anos, Senna não conquistou títulos... inacreditável, pela segunda vez.

Especialistas entrevistados no documentário "Senna - O Brasileiro, O Herói, O Campeão" afirmam que o ano de 1993, apesar de Senna não ter conquistado o título mundial, foi quando ele entregou as melhores performances na pista. Mas, pelo visto, para os produtores da série da Netflix isso não tem importância. O que importava era entregar ufanismo caricato e sem serventia alguma. 


 

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