Era só um Zé Povinho, naquele gelado e encharcado 13 de julho da Gravataí dos Anjos d’Aldeia.
Um joão-ninguém, xiru do campo, talvez. Ou talvez um ex-industriário vitimado pelas desempregadoras GM, Pirelli, Heineken, Taurus...
Um Zé Povinho que saiu de casa em meio ao ciclone, na urgência de sepultar um cachorro, companheiro de dores e de alegrias por mais de uma década, carregado sem vida num saco.
Um Zé Povinho que virou cadáver. Mas que ao ser achado tinha uma certeza em cada mão.
A primeira é que, ao sentir a morte no cangote, ele recusou largar o amigo no então encorpado córrego Saraquá, regato ingrato que se tornou vagalhão e o afogou. O Zé Povinho sabia que ele, o cão e o riacho, são partes de um todo. E que as partes devem respeito ao todo.
A segunda estava na outra mão do Zé Povinho, que agarrava em última e desesperada providência a carteira de trabalho.
O mais triste nesse relato é o comportamento da grande família humana do sufocado Zé Povinho, família que não demonstra os menores cuidados nem para com o todo, nem para com a carteira de trabalho.
Dias antes, registraram-se as duas maiores temperaturas médias do planeta desde que aprendemos a escrever. Afora os terraplanistas e o ex-secretário de mudanças climáticas da cidade de Sampa, até os cães mortos e carregados em sacos sabem que o aquecimento global e os eventos extremos decorrem de nossas ações.
Chama-se antropoceno o abismo no fundo do qual encontraremos nossa própria extinção em nome do sacralizado lucro de uma insana minoria que não se vê parte do todo, senão como o próprio “todo”, e que acredita ter o umbigo imune aos efeitos de sua irracionalidade. Afinal, a enorme maioria dos desastres alcança o Zé Povinho e seu cão, e não os ricos.
A mesma irracionalidade dos ricos, criadora de oceanos de plásticos e de desertos (verdes ou não) onde antes havia florestas e savanas, gera também a colossal onda destruidora da carteira de trabalho dramaticamente agarrada pelo Zé Povinho. Assim agiu o Xandão cultuado por incautos, ao consagrar em fins de maio o grilhão neo-escravista conhecido como Uber (Alles).
Destroem na maré liberal e quando esta reflui e o Zé Povinho começa a ter direitos, fazem o esgoto regurgitar os Mussolixo, Hitlerlixo, Trumplixo e Bolsonalixo invocados pelos sacerdotes liberais para matar aos milhões.
Endurecidos na crueza do combate aos monstros e a seus invocadores, tendemos a nos fixar nas chances de o Zé Povinho de Gravataí ter votado no fascismo, que são de 60 a 40, apenas para assim evitar a dolorosa empatia. Como se o voto do Zé Povinho o definisse.
O que realmente importa é que o Zé Povinho preferiu morrer a abandonar o corpo de um amigo.
E mais ainda importa que ao morrer ele agarrasse a carteira do trabalho, sua identidade de classe.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum