Um “serial killer negro” para evitar uma guerra racial
O caso das crianças assassinadas em Atlanta expõe até hoje as feridas abertas do racismo estrutural nos EUA
Um “serial killer negro” para evitar uma guerra racial. Essa é uma das teorias que rondam a sequência de crimes brutais ocorridos entre 1979 e 1981 em Atlanta, capital da Geórgia — na época, símbolo de progresso e liderança negra no sul dos Estados Unidos.

Pelo menos 28 crianças, adolescentes e jovens negros foram mortos em circunstâncias que abalaram a comunidade e alimentaram teorias sobre racismo, supremacistas brancos e interesses políticos.
Quando os primeiros corpos apareceram — todos meninos ou rapazes negros de bairros pobres — cresceu o temor de que os crimes fossem motivados por grupos racistas.
Atlanta era chamada de “a cidade demasiadamente ocupada para odiar”, com uma classe média negra em ascensão, grandes empresas como Coca-Cola, Delta Airlines e a rede de notícias CNN investindo pesado na região.
Essas marcas eram símbolos do desenvolvimento econômico que ajudaram Atlanta a projetar para o resto dos EUA a imagem de “cidade moderna, aberta a negócios e modelo de integração racial” — o que torna ainda mais forte a contradição exposta pelo caso das crianças assassinadas.
Havia também uma liderança política histórica: Maynard Jackson, o primeiro prefeito negro da cidade, e Lee Brown, o comissário de polícia na época, também negro. Mesmo assim, essa fachada de integração convivia com bairros segregados, violência policial e células ativas da Ku Klux Klan (KKK) nos arredores.
Atlanta entrou em pânico. Enquanto famílias negras viviam o terror de perder seus filhos, a polícia — ainda com grande parte do comando branco — demorou a agir, tratando alguns desaparecimentos como “crianças fugitivas” ou brigas de gangues. A revolta foi imediata: como a “capital negra do Sul” não conseguia proteger suas próprias crianças?
Wayne Williams: o “assassino ideal”?

Em 1981, a polícia prendeu Wayne Williams, jovem negro, fotógrafo e promotor musical, flagrado perto de uma ponte onde corpos eram jogados. Ele foi condenado por dois assassinatos de adultos, mas, sem provas diretas para os demais crimes, as autoridades atribuíram a ele quase todos os assassinatos para “fechar” o caso.
Para muitos líderes da comunidade, a versão oficial era conveniente: ao culpar um “serial killer negro solitário", Atlanta evitava responsabilizar supremacistas brancos — e, assim, impedia uma explosão de protestos que poderia manchar sua imagem de “cidade do futuro”.
Documentos do FBI, revelados depois, mostraram que havia pistas ligando alguns assassinatos a membros da KKK. Escutas telefônicas captaram conversas de células da Klan em East Point, nos arredores de Atlanta, sobre sequestrar meninos negros — mas essas provas sumiram ou foram lacradas por décadas.
Investigações independentes, livros e séries reforçam a teoria de que culpar Williams foi uma forma de evitar uma guerra racial aberta. Até hoje, familiares das vítimas e o próprio Williams — que segue preso e proclama inocência — pedem novos testes de DNA para confrontar as evidências da época.
COINTELPRO, perfil criminal e o FBI
Na mesma época, o FBI ainda conduzia o COINTELPRO, programa de espionagem e sabotagem de movimentos de direitos civis. Para investigar os assassinatos em Atlanta, a agência usou técnicas de perfil criminal, ainda novidade, traçando o suposto “perfil psicológico” do assassino como um homem negro, jovem e da própria comunidade.
Esse perfilamento reforçou a narrativa de que o assassino era Wayne Williams — e consolidou o poder do FBI como autoridade máxima em crimes complexos. Relatos indicam que a agência ignorou pistas ligando a KKK para evitar uma crise racial nacional. Parte dos documentos que ligavam supremacistas aos crimes foi destruída ou desapareceu em transferências de jurisdição.
A mídia branca e o “monstro interno”
No início, a grande imprensa ignorou os casos. Os primeiros desaparecimentos foram tratados como “problemas familiares”, “crianças fujonas” ou resultado de violência entre gangues — rótulos que alimentavam estereótipos racistas e diminuíam a urgência de uma investigação séria. Só quando o número de vítimas explodiu e o medo tomou conta das ruas é que o assunto ganhou repercussão nacional.
Quando finalmente virou manchete, a narrativa dominante reforçou a imagem de Wayne Williams como o “monstro interno” — um assassino negro, da própria comunidade — o que ajudou a esvaziar qualquer discussão sobre uma possível motivação racista coordenada por fora. Assim, a cobertura desviava a atenção de pistas ligando grupos supremacistas aos crimes e, ao mesmo tempo, alimentava a ideia de que o perigo estava “entre os próprios negros”, não em uma estrutura de violência racial organizada.
Na prática, a forma como o caso foi noticiado expôs o quanto a grande mídia branca dos EUA — que, historicamente, já havia tratado movimentos pelos direitos civis com desconfiança — também podia ser cúmplice ao escolher qual narrativa interessava preservar.
Para muitos estudiosos, esse enquadramento midiático foi essencial para enterrar perguntas incômodas e proteger a imagem de uma Atlanta supostamente “livre do ódio racial”, mas que, na realidade, ainda escondia feridas abertas de segregação e supremacia branca.
O medo como arma: a análise de Baldwin

O escritor e ativista James Baldwin, uma das vozes mais incisivas contra o racismo nos EUA, acompanhou de perto o clima de medo em Atlanta no início dos anos 1980. Para Baldwin, o caso das crianças assassinadas era muito mais do que uma sequência de crimes brutais: era um retrato cruel de como o medo pode ser usado como ferramenta para manter a comunidade negra sob controle.
Em artigos, entrevistas e principalmente em seu ensaio-reportagem publicado na revista Esquire em agosto de 1985, intitulado “The Evidence of Things Not Seen” (A Evidência das Coisas Não Vistas), Baldwin expôs as contradições de Atlanta — uma cidade vendida como símbolo de progresso negro, mas que revelou seu racismo estrutural assim que os corpos de meninos pobres começaram a aparecer.
O impacto desse texto foi tão grande que Baldwin transformou o material em um livro-reportagem, lançado no mesmo ano, aprofundando suas reflexões sobre o medo, o racismo e a hipocrisia da política racial no pós-segregação. No livro, Baldwin discute abertamente a teoria de que culpar Wayne Williams, um jovem negro, foi conveniente para proteger a elite política e econômica, evitar conflitos raciais abertos e enterrar as ligações com supremacistas brancos — especialmente a KKK.
Baldwin também denunciou o silêncio inicial da grande imprensa branca, que ignorou os desaparecimentos enquanto pôde — só dando manchete quando a tragédia ficou grande demais para ser varrida para debaixo do tapete. Para ele, Atlanta viveu um terror que não nasceu apenas de um suposto assassino em série, mas de um sistema que permitiu que aquelas crianças fossem esquecidas até ser tarde demais.
Mais de 40 anos depois: uma ferida aberta
Mais de quatro décadas se passaram e Atlanta ainda carrega essa ferida. Em 2019, a então prefeita Keisha Lance Bottoms prometeu reabrir os casos com novas análises forenses — mas até hoje não há resultados definitivos. Livros, séries como Mindhunter (Netflix) e podcasts como Atlanta Monster mantêm viva a discussão.
Para muitos, Wayne Williams pode ter participação em alguns assassinatos — mas parte dos crimes nunca foi atribuída aos verdadeiros responsáveis. Atlanta, símbolo de orgulho negro no Sul, também é lembrada como palco de uma verdade incômoda: quando conveniente, o sistema fecha os olhos — e quem paga são sempre os mesmos.
O documentário Atlanta's Missing and Murdered: The Lost Children (HBO, 2020) revisita com profundidade o terrível caso dos assassinatos de crianças e jovens negros entre 1979 e 1981, em Atlanta. A série de cinco episódios usa material de arquivo inédito, entrevistas com familiares, agentes e especialistas, além de relatar o pânico que tomou conta da cidade e as falhas no processo investigativo.