Com 1,4 bilhão de habitantes, a China representa um enorme potencial de consumo. A Uniqlo, marca de fast fashion japonesa, tem entre 900 e mil lojas na potência asiática e planeja expandir para três mil, o que deixa à mostra o papel estratégico do mercado chinês para o crescimento da marca.
Diante desse cenário em que a Uniqlo tem mais lojas na China do que no seu país de origem pegou muito mal a declaração feita pelo homem mais rico do Japão, Tadashi Yanai, em entrevista à BBC.
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O CEO da Fast Retailing, empresa-mãe da Uniqlo, afirmou ao veículo britânico que a marca japonesa de moda não utiliza algodão da região de Xinjiang, na China, em seus produtos. Esta foi a primeira vez que Yanai abordou diretamente a questão, gerando reações online e pedidos de boicote entre os consumidores chineses.
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A emissora britânica publicou na última quinta-feira (28) uma entrevista com Yanai na qual ele foi questionado se a varejista japonesa obtinha algodão da região.
Yanai inicialmente respondeu à pergunta da BBC dizendo: "Não estamos usando", antes de se interromper e afirmar que não gostaria de continuar sua resposta, pois era "muito política".
Governo da China responde
Durante coletiva regular de imprensa do Ministério das Relações Exteriores da China na última sexta-feira (29), a porta-voz Mao Ning comentou a declaração de Yanai.
"O algodão da região de Xinjiang está entre os melhores do mundo. Esperamos que a empresa em questão supere pressões políticas e interferências mal-intencionadas, tomando decisões comerciais de forma independente e que sirvam aos seus próprios interesses", disse.
Redes sociais chinesas pedem boicote
A gigante de roupas casuais Uniqlo agora enfrenta um tsunami de críticas online. O relato do magnata da moda japonês viralizou na rede social chinesa Weibo, com vários usuários criticando a empresa e alguns afirmando que deixariam de comprar seus produtos.
"Com essa atitude da Uniqlo, e seu fundador sendo tão arrogante, eles provavelmente estão apostando que os consumidores do continente esquecerão disso em poucos dias e continuarão comprando", escreveu um usuário. "Então, podemos nos manter firmes desta vez?"
O algodão de Xinjiang, antes prestigiado mundialmente, tem sido alvo de acusações de produção por trabalho forçado envolvendo a minoria muçulmana uigur — acusações negadas por Pequim. Em 2022, os Estados Unidos implementaram regulações rigorosas para importar bens da região, levando marcas como H&M e Nike a boicotarem o material, enfrentando retaliações no mercado chinês.
Anteriormente, Yanai evitava se posicionar, o que permitiu à Uniqlo preservar sua popularidade no país. Contudo, após suas recentes declarações, usuários na rede social Weibo acusaram a marca de arrogância e impulsionaram hashtags como "Uniqlo aposta no esquecimento dos consumidores chineses" e "Apoio ao algodão de Xinjiang".
Apesar da polêmica, Yanai reafirma a importância estratégica da China, onde a Uniqlo tem mais lojas do que no Japão. Ele planeja expandir a operação no país, enquanto enfrenta desafios no Ocidente, onde consumidores estão cada vez mais atentos a questões de direitos humanos.
O peso da China para a Uniqlo
A Ásia é o maior mercado da Uniqlo, e a China desempenha um papel fundamental nessa liderança. A presença no país não apenas impulsiona vendas, mas também reforça a posição da marca no cenário global.
A Uniqlo depende significativamente da China tanto como mercado consumidor quanto como centro de produção. Das 155 fábricas têxteis da marca, 75 estão localizadas no país asiático. Do total de 397 instalações de manufatura, 211 estão localizadas em território chinês.
Em 2019, a empresa anunciou planos de transferir parte de sua produção para países do Sudeste Asiático, como o Vietnã, em resposta a tensões comerciais entre os EUA e a China. Mas a experiência e infraestrutura da China como "fábrica do mundo" ainda são difíceis de replicar.
Mesmo com desafios econômicos e políticos no país, Yanai enfatizou que a China continua sendo um pilar central para a Uniqlo, especialmente no contexto de sua ambição de se tornar a maior varejista de moda do mundo, superando a Inditex (dona da Zara).
Entenda a polêmica
O algodão é a fibra natural mais popular no mundo, com um consumo anual global de 24,4 milhões de toneladas, ou aproximadamente 20% da produção total de fibras para a indústria da moda e têxtil.
Xinjiang é responsável por cerca de 20% da produção mundial de algodão, o que torna a região uma peça central na cadeia de fornecimento global da indústria têxtil.
Os boicotes contra o algodão de Xinjiang surgiram em resposta a alegações de violação de direitos humanos na região - que é alvo de ameaças terroristas - voltadas, principalmente, ao tratamento da minoria muçulmana uigur.
As acusações contra o governo chinês incluem a detenção em massa de uigures em centros de reeducação, vigilância em larga escala e repressão cultural e religiosa, além do uso de trabalho forçado na colheita de algodão e em outras indústrias.
O governo chinês nega as acusações de trabalho forçado e argumenta que as medidas de segurança em Xinjiang são necessárias para combater o extremismo e o terrorismo. Pequim acusa os países ocidentais de interferirem em seus assuntos internos e de promoverem uma campanha de desinformação contra a China.
Vários países ocidentais, como os Estados Unidos e membros da União Europeia, impuseram restrições e sanções ao algodão produzido em Xinjiang, alegando que a produção envolve trabalho forçado e outras práticas abusivas.
As sanções e boicotes têm pressionado marcas globais de moda e varejistas a revisar suas cadeias de suprimento. Empresas como Calvin Klein, Tommy Hilfiger, H&M, Nike e Adidas enfrentaram reações mistas ao retirarem algodão de Xinjiang de seus produtos, gerando boicotes internos na China como retaliação.
Muitas marcas globais, como Calvin Klein e Tommy Hilfiger, que evitaram usar algodão da região devido a alegações de violações de direitos humanos, enfrentaram um boicote reverso dentro da China.
Jovens consumidores chineses têm utilizado as redes sociais para expressar apoio ao algodão de Xinjiang e rejeitar marcas vistas como críticas ao país.
Carta na manga
A Região Autônoma Uigur de Xinjiang é uma "carta na manga" dos Estados Unidos e aliados para conter a China. O vasto território faz fronteira com oito países: Rússia, Mongólia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Afeganistão, Paquistão e Índia.
Está no centro de rotas comerciais estratégicas. Foi peça central na Rota da Seda e continua a desempenhar um papel fundamental na Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), projeto ambicioso da China para conectar a Ásia com a Europa e a África por meio de infraestrutura e comércio.
Xinjiang é rica em recursos naturais, particularmente em petróleo, gás natural, carvão e minerais. É uma das principais bases de produção de energia, e seu desenvolvimento é parte da estratégia chinesa de segurança energética, crucial para o crescimento econômico de alta qualidade.
É um ponto de ligação para a expansão da influência chinesa na Ásia Central e além. Ao desenvolver conexões ferroviárias, rodoviárias e de energia que passam pela região, a China minimiza a dependência de rotas marítimas. Também é um elo importante para o comércio de energia com o Oriente Médio e a Europa.
Ameaça terrorista
A região tem um ponto crítico: a ameaça terrorista. A partir da década de 1990 até meados de 2010, Xinjiang enfrentou uma série de ataques atribuídos a grupos separatistas e extremistas, como o Partido Islâmico do Turquestão Oriental (ETIM).
Esses ataques incluem atentados suicidas, bombardeios e facadas que resultaram na morte de centenas de civis e forças de segurança. Pequim adota políticas de segurança que incluem vigilância e centros de reeducação.
Centros de reeducação que existem também em países ocidentais, como Estados Unidos e França.
Nos Estados Unidos, o sistema para enfrentar o terrorismo se baseia fortemente em prisões, com instalações de alta segurança, como a ADX Florence, onde estão presos condenados como líderes da Al-Qaeda.
Embora existam programas de desradicalização, como terapias cognitivo-comportamentais e aconselhamento religioso, a abordagem dos EUA é amplamente criticada pela falta de ênfase na reabilitação e reintegração dos detidos.
Além disso, a prisão de Guantánamo é alvo de críticas internacionais por violações de direitos humanos, especialmente devido ao uso de tortura em interrogatórios.
Na França, a tentativa inicial de criar centros de desradicalização fora das prisões, como o Château de Pontourny, foi descontinuada após resultados insatisfatórios. Esses centros visavam educar civicamente e reabilitar jovens em risco de radicalização, mas foram fechados em 2017.
A partir disso, o foco francês se voltou para programas implementados dentro de prisões, oferecendo apoio psicológico, aconselhamento religioso e educação sobre os valores republicanos. Após a libertação, os condenados por terrorismo são submetidos a rigorosa vigilância, uma medida para evitar a reincidência e garantir a segurança pública.
A China implementou uma rede de centros de reeducação em Xinjiang, voltada principalmente para a minoria uigur e outras minorias muçulmanas. Pequim diz que esses centros são parte de uma estratégia eficaz para combater o extremismo e promover o desenvolvimento econômico da região, oferecendo treinamento vocacional e educação ideológica.
O algodão das camisetas e calças jeans cultivado em Xinjiang carrega com ele a complexa realidade de onde é produzido, e das pessoas que o cultivam. No caso da China, por meio da moda, os EUA e aliados abriram uma nova frente de disputa com impacto profundo na geopolítica global.
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