“Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos
O preconceito e o desprezo ainda são iguais
Nós somos negros também temos nossos ideais”
(Letra:Racistas Otários – Disco: Holocausto Urbano - Racionais Mc’s - 1990)
Em dezembro de 2014 eu fiz um texto chamado a “A morte que não comove”, onde eu comparava as mobilizações que ocorriam nos Estados Unidos por conta da morte do jovem negro Michael Brown, 18 anos, na pequena cidade de Ferguson, com cerca de 21 mil habitantes, no Estado de Missouri, e que mobilizou outras 170 cidades de 37 estados e com uma grande repercussão internacional, enquanto no Brasil o mapa da violência apontava para nós como o país que mais mata no mundo, em números absolutos, tendo 56 mil pessoas assassinadas no ano de 2012, e isso não era capaz de mobilizar e comover a sociedade brasileira.
Neste ano, o Atlas da Violência aponta que em 2015 foram 59 mil assassinatos. Ou seja, os números permanecem crescendo e as vítimas continuam as mesmas: jovens entre 15 e 29 anos, negros e moradores das periferias. Na semana que esses dados foram apresentados, a principal pauta na grande mídia foi o que ocorria no julgamento da chapa Dilma/Temer no TSE, que teve um desfecho revelador do quanto a Justiça brasileira está muito longe de ser isenta, imparcial e o quanto ela se adapta aos interesses de quem está no poder. Mas voltando ao que realmente deveria ser a grande notícia em nosso país, que vivemos uma guerra civil não declarada, que tem um recorte de classe e étnico, imbricado, muito bem definido. Que tem como maior responsável direto ou indireto o Estado. A responsabilidade direta podemos associar às ações dos órgãos repressores que agem de forma violenta nos territórios periféricos para manter o controle e combater o inimigo, tendo como principal pano de fundo o combate ao tráfico de drogas ilícitas, ou mais conhecido como a guerra às drogas. Outra forma em que as polícias atuam de forma contundente e violenta é na defesa do patrimônio privado . Outra forma de responsabilidade do Estado pelo aumento da violência que podemos chamar de indireta, pois não é necessariamente um agente do estado que puxa o gatilho, são as profundas desigualdades sociais que concentram a riqueza nas mãos de muito poucos em detrimento da maioria. Esse modelo tem raízes históricas no escravismo e se arrastam até hoje. O aumento do desemprego, a ausência de oportunidades, a precarização da saúde, da educação, geram um aumento da miséria e consequentemente são fatores estruturais que contribuem com o aumento da violência. Esse debate não é uma novidade no Brasil. Em 1978, um dos estopim das mobilizações que laçaram o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), nas escadarias do Teatro Municipal, foi a morte de Robson Silveira da Luz em uma delegacia em Guaianazes, zona leste de São Paulo. Na década de 90, período de aprofundamento do neoliberalismo, aumento do desemprego, aumentos dos chamados cinturões de miséria, produziram um aumento da violência nos territórios periféricos, praticados pela polícia e muito bem relatado pelo movimento Hip Hop e sua música Rap. Recentemente, durante uma entrevista de lançamento da Exposição sobre os 30 anos de carreira dos Racionais Mc’s, eles foram indagados pelo Jornalista André Caramante se o disco “Sobrevivendo no Inferno”, de 1997, foi a primeira vez que o grupo dialogou com outras classes sociais além das periferias, e o Mano Brown foi certeiro ao dizer que “o Brasil tem épocas de cegueira, se alto aliena, de tempos em tempos fica cego, surto e mudo, nessa fase [anos 90], tava cego surdo e mudo, tinha coisa muito óbvia que ninguém via, mais a periferia via, vivia, mais também não via, tava dentro do jogo mais não sabia que envolvia elas”. Dando sequencia, Brown resgata Malcon X e fala o quanto a sua autobiografia foi uma inspiração para as composições dos Racionais. “Esse livro mudou a minha vida e nossos raps vieram baseado naquela analogia dele, aquela forma de ver a vida, o porque das coisas”, disse, e disparou novamente retratando a cegueira da sociedade diante das desigualdades e do racismo. “Então, a cegueira, eles não veem porque estavam cegos, tava na cara deles, eles não encontravam com o moleques no farol? Eles já não tinha visto assalto? Não tinha visto favelas se multiplicando na cidade? Eles não acompanham noticiário? Ele não vê o cara trabalhando na casa dele, trabalhando para ele, tirando a sujeira para ele, ele não vê? Tá cego? Como você ignora uma pessoa que está na sala da sua casa cheia de problemas, triste, de cabeça baixa, você não percebe? E se fosse com eles? Então, o cara não é um móvel, é um ser humano , um monte de gente triste por aí, você não tá vendo? Uma pá de gente triste, uma pá de bar lotado, criança em baixo de ponte, rebelião, gente morrendo pra caralho. Você está aonde, parceiro? Na França? Ai quando os Racionais vem falando o óbvio, a sociedade diz: 'Nossa os caras é foda'. Foda o que!?”. Indo mais a fundo na questão, Mano Brown escancara: “Eu sou semianalfabeto parceiro, eu falei o óbvio, puta país racista do caralho, só patifaria, falamos o óbvio, porque eles não veem? 'Os caras [Racionais] é gênio'. Gênio o que, malandro?! Eu saí do primeiro colegial porque eu não aprendia, simplesmente porque foi me cansando , me injuriando, peguei raiva, dos alunos, do professor, da escola, eu não aprendia, porque eu não comia bem, nunca fui porra nenhuma, nem profissão nós temos”. A crônica social escrita pelo rap foi um grito de uma juventude que estava sendo massacrada, e como muito bem disse Brown, apenas se falou o óbvio diante da cegueira, da auto alienação da classe média, e a elite que tentava jogar para debaixo do tapete aquilo que estava na cara. Pensando na atualidade podemos resgatar mais um vez os Racionais que afirmam de forma contundente na letra “Racistas Otários”: Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos/ O preconceito e o desprezo ainda são iguais/Nós somos negros também temos nossos ideais”. Continuamos nessa jornada. O corpo negro ainda é visto como descartável, como matável, encarcerável, açoitável, violentável. A cegueira também é um elemento muito conveniente para a manutenção dos privilégios e desigualdades no Brasil. Romper essa naturalização é o grande desafio e isso só será possível construindo um projeto de nação que rompa o cordão umbilical com o escravismo. A Casa Grande ainda é um símbolo vivo em nossa sociedade. Enquanto o privilégio for visto como natural não conseguiremos vencer a cegueira persistente e conveniente apontada pelo Mano Brown. Por isso, o movimento negro é o movimento social mais pedagógico desse país, pois ele mantém acessa a memória escravista, mas também trás a memória da resistência e não abre mão de cobrar a dívida histórica com o povo negro, como também não abrirá mão de construir um projeto libertário de nação. Como diria o poeta José Carlos Limeira, “Por menos que conte a história/ Não te esqueço meu povo/ Se Palmares Não vive mais/ Faremos Palmares de novo”. *Joselicio Junior, mais conhecido como Juninho, é Jornalista, Presidente Estadual do PSOL – SP e militante do Círculo Palmarino, entidade do movimento negro