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Eleanor Roosevelt, como Janja, seria destroçada pela mídia provinciana que temos. Ou não

Mesmo mulheres jornalistas demonstram preferir o modelo "bela, recatada e do lar" de primeira-dama; mas até Michelle foi mais bem tratada que as companheiras de Lula

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Uma nova forma de fazer jornalismo. Cultura, política, feminismo, direitos humanos, mídia e trabalho. Editora: Cynara Menezes
Eleanor Roosevelt, como Janja, seria destroçada pela mídia provinciana que temos. Ou não
Eleanor Roosevelt, a "primeira-dama voadora", em 1933. Foto: Franlin D. Roosevelt Presidential Library.

CYNARA MENEZES

A primeira-dama Janja Lula da Silva ganhou um cargo no governo federal e dará uma entrevista coletiva semanal às jornalistas mulheres no Palácio do Planalto. Imaginem a chorumela midiática se essas notícias de fato se referissem à mulher de Lula e não a Ruth Cardoso, mulher de Fernando Henrique Cardoso, e a Eleanor Roosevelt, mulher de Franklin Delano Roosevelt, o 32º presidente dos EUA.

Sim, dona Ruth ganhou um cargo no governo em 1995. Era presidenta do conselho do Comunidade Solidária, um cargo honorífico, mas o programa, criado e comandado por ela, estava vinculado à Presidência da República. A norte-americana Eleanor, que como Ruth é sempre lembrada como exemplo de primeira-dama, passou a dar entrevistas coletivas semanais na Casa Branca a partir de 1933. Em 12 anos, foram 348 coletivas, o que obrigou as agências de notícias e jornais a contratarem mais jornalistas mulheres. Ai de Janja se fizesse algo parecido!

Eleanor Roosevelt, que como Ruth Cardoso é sempre lembrada como exemplo de primeira-dama, passou a dar entrevistas coletivas semanais na Casa Branca a partir de 1933. Em 12 anos, foram 348 coletivas. Ai de Janja se fizesse algo parecido!

Eleanor Roosevelt viajava tanto representando seu país como primeira-dama que ganhou os apelidos de "Eleanor Everywhere" ("Eleanor em toda parte"), "Travelin' Eleanor" ("Eleanor Viajante") e "Flying First Lady" ("primeira-dama voadora"). Escrevia uma coluna diária, My Day, distribuída a jornais de todo o país, uma coluna mensal numa revista, e tinha um programa de rádio. Bem a propósito, Ruth Cardoso recebeu a medalha Eleanor Roosevelt em Nova York em 2000 pelo seu trabalho à frente do Comunidade Solidária.

Certamente Eleanor teria sido destroçada pela mídia comercial se fosse brasileira, falando e viajando tanto assim. Ou não, já que era gringa. Michelle Obama fazia lobby no Congresso norte-americano por projetos de lei que interessavam ao governo e foi elogiada pela mídia nativa a ponto de fazer colunista chorar com as declarações de amor de Barack a ela; Jill Biden viajou pelos EUA em campanha pela vacinação contra a Covid-19 e organizou eventos feministas, e o máximo que fizeram foi chamá-la de "ativista". A própria Eleanor foi louvada aqui por sua "parceria" com FDR "em favor do país".

Dona Ruth foi (e ainda é) extremamente bem tratada pela mídia, que a poupou das puladas de cerca de FHC, mas só depois que ficou muda: o marido a desautorizou por ela ter dito, em 1994, ainda durante a campanha, que "o PFL tem Antônio Carlos Magalhães, mas também tem Gustavo Krause e Reinhold Stephanes". "Foi uma colocação infeliz", disse FHC. Ruth passaria os dois mandatos praticamente sem dar entrevistas.

A provinciana mídia brasileira gosta de primeiras-damas mudas. Recentemente, para atingir Janja, passaram a elogiar Marisa Letícia, a quem passaram duas décadas espinafrando, por ser "discreta". Marisa era uma mulher inteligente, politizada, apontada por muitos como a principal conselheira do marido, mas diante da imprensa era reservada –o que não a salvou de ser criticada até pelas festas juninas com trajes típicos que organizava na Granja do Torto. Uma "caipirada", escreveu Danuza Leão, "breguice difícil de ser superada", coisa "de Jeca Tatu".

Lula nem havia assumido o seu terceiro mandato, em novembro de 2022, quando Janja foi atacada por uma colunista da mídia comercial por seu "excesso de espaço". O pecado de Janja: sentar-se ao lado de lideranças em um encontro do presidente eleito com aliados. "Por que ela estava ali?" Eleanor Roosevelt discursava nas convenções do Partido Democrata. How dare you,  Janja? As opiniões políticas das primeiras-damas, pontificou, deveriam se restringir à alcova; que falem, mas "a quatro chaves, dentro do quarto do casal". Triste constatar que, inclusive para mulheres jornalistas, o modelo de primeira-dama ideal é Marcela Temer, "bela, recatada e do lar".

A provinciana mídia brasileira gosta de primeiras-damas mudas. Recentemente, para atingir Janja, passaram a elogiar Marisa Letícia, a quem passaram duas décadas espinafrando, por ser “discreta”. Mas quando era primeira-dama Marisa foi criticada até por organizar festas juninas

Mas mesmo Michelle Bolsonaro foi mais bem tratada pela mídia comercial do que Janja. Quando Michelle se prestou ao papel ridículo de falar em línguas estranhas e dar pulinhos para saudar a nomeação do "terrivelmente evangélico" André Mendonça para o STF, a Folha de S.Paulo escalou uma repórter para defendê-la da "intolerância religiosa" da esquerda ouvindo apenas bolsonaristas –e sendo que as tais línguas, popularizadas atualmente em cultos para ajudar a arrancar dinheiro de ingênuos, não são unanimidade nem entre os evangélicos.

Agora criaram uma falsa controvérsia para alimentar o bolsonarismo: Janja teria criticado o tiktok diante do líder chinês Xi Jinping. E qual o problema? O tiktok é uma empresa privada, não um órgão governamental para se falar em "gafe". E os reparos que ela fez à rede social chinesa, de que dissemina conteúdo prejudicial a crianças e adolescentes, são generalizados no mundo hoje –o ex-presidente Joe Biden chegou a aprovar uma lei que resultaria em sua proibição nos EUA. Atacar Janja por isso só demonstra o extremo viralatismo da imprensa brasileira.

No fundo, o problema da mídia comercial (e das mulheres da mídia comercial) não é com primeiras-damas com personalidade e ideias próprias, é com as companheiras de Lula, mudas ou falantes, discretas ou participativas. É um misto de machismo com o velho preconceito de classe que sempre norteou o tratamento dado ao presidente operário e nordestino pelos jornalões e TVs desde a primeira vez que ele chegou ao Planalto, em 2003.

Lamentável é ver mulheres jornalistas participando desse show de misoginia. Não aprenderam nada desde que fizeram o que fizeram com Dilma. Se Jair Bolsonaro voltar ao poder, ou outro extremista de direita no lugar dele, maltratando colegas repórteres, elas voltam a sentir sororidade.

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